A APES entrevistou Marcella Beraldo, professora e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da UFJF. Nesta conversa, Marcella Beraldo fala sobre a vida das mulheres em situação de isolamento social colocada pela pandemia do coronavírus. A partir de sua experiência da maternidade e enquanto pesquisadora, ela aborda tanto as questões do microcosmo da esfera doméstica quanto das políticas públicas necessárias para a garantia dos direitos das mulheres. Confira:
1 – Como mulher, mãe e pesquisadora, como você tem vivenciado a experiência do confinamento, diante dos desafios que o isolamento social nos colocou?
A situação do isolamento se assemelha muito ao que é a mulher no puerpério, aquele momento logo após o parto. É um momento bem individual, depende muito de cada mãe, cada mulher, de quanto tempo dura o puerpério. Mas é um período que nós chamamos de quarentena, não como a gente tem ouvido nas mídias, quarentena de 15 dias. A palavra significa, na verdade, 40 dias. Então, na quarentena você tem 40 dias, que você tem que se isolar, ficar dentro de casa.
Na minha rotina pessoal, em termos de atividades, ela não se modificou com a chegada do isolamento. Porque minha filha nasceu no dia 10 de fevereiro, então em fevereiro foi o início disso tudo e esse início de março que passou a vir globalmente essa história do isolamento. Eu estava terminando a minha quarentena do puerpério, que terminaria no dia 10 de março. Na verdade eu estendi esse meu período de isolamento e permaneço nele. Já estava praticando desde que minha filha chegou, na verdade até um pouco antes, nas semanas que antecederam o parto, então, posso dizer que desde meados de janeiro eu estou em isolamento.
É interessante, para as pessoas vivenciarem na pele das mulheres, o que elas vivem depois que elas parem. Que elas ficam nesse isolamento. Mas este está sendo um isolamento de medo, então eu acho que tem essa diferença, que é uma grande diferença, que neste momento é um isolamento onde eu estou com medo de sair e me deparar com esse inimigo invisível, e trazer para a minha casa, esse inimigo invisível.
Eu acho que sendo mãe, eu estou, de fato, com mais medo do que se eu não fosse mãe. Eu tenho muito medo pelos meus pais, que estão no Rio, que são idosos. Mas parece que aquela coisa de ter um medo mesmo do cuidado que eu devo ter com as minhas filhas pequenas. Uma tem 4 anos e a outra está com um mês, quase 2 meses. E eu vejo aquele serzinho muito frágil e eu fico “Meu Deus” e esse vírus e isso tudo. Está sendo um isolamento voluntário, mas um isolamento diferente no sentido do medo.
Como mãe, eu tenho visto algumas postagens de algumas mães, em alguns grupos que eu participo, que a sobrecarga no isolamento acaba sendo muito grande, da demanda. Como mãe pesquisadora acadêmica, parece que é uma coisa até maior. Porque nesse momento eu estou na licença maternidade, então eu não estava com uma demanda de trabalho, apesar de eu estar terminando uma pesquisa financiada pelo CNPq, e eu estou tendo que fazer relatório. Mas é diferente das pessoas que são mães e não estavam de licença, e que teria a demanda ainda das aulas online, ou então de propor atividades para os alunos. Ou seja, a mulher acaba ficando com a tarefa doméstica, com a carga do trabalho de pesquisa, que não acaba nesse isolamento, porque nós, pesquisadores, trabalhamos muito em casa. E com a carga de você estar com uma criança dentro de casa.
Por exemplo a minha filha de quatro anos que demanda muito, até mais que a bebezinha. Então, na verdade você não consegue concentrar muito tempo para escrever um relatório, para escrever um texto, ler um livro. Então a questão da criança não ir para a escola deixa a sua rotina muito pesada e muito picotada, em relação a ter uma concentração para fazer qualquer tipo de trabalho que demande um pouco mais. Então, essa é uma coisa que todas as mães têm enfrentado.
Tem a questão das escolas estarem demandando bastante de nós fazermos atividades em casa, mas nós já estamos com atividade doméstica, atividade do cuidado com o filho, e ainda ter que assumir um papel de professor, fazendo as atividades dos seus próprios filhos, porque eles fazem atividades que estão sendo enviadas pelo Whatsapp, pelo email. E além disso o seu próprio trabalho. Então, a rotina ficou praticamente impossível. Acredito que muitas mães estejam na mesma situação, eu tenho lido nas redes sociais. Muitas dizendo umas pras outras “relaxa, se tem atividades das crianças que a escola está demandando, relaxa, não deu para fazer”, porque você começa a lidar com uma loucura de demandas.
Então eu acho que esse não é o momento para tentar fazer uma rotina na sua casa, como se fosse uma rotina normal, porque não é uma rotina normal! Não dá, o negócio é encarar que nós estamos em um momento lotado de exceções. Talvez seja um momento de rever questões da própria rotina, de pensar, refletir sua relação com o seu filho, de pensar quais são as prioridades, quais não são, de estar mais próximo dos familiares, de brincar mais com os filhos, de aceitar um pouco o ócio de uma rotina sem muita organização, sem se culpar muito por isso
A gente tem que aproveitar esse contexto, dentro de casa, para pensar como nós dividimos as tarefas domésticas. Porque a mulher acaba ficando sobrecarregada com tarefas domésticas nesse isolamento, então a demanda é muito grande: da maternidade, da casa, do trabalho como pesquisadora e das atividades das crianças. É hora de repensar como a gente divide, como a gente organiza. Então meu companheiro, nesse período, está contribuindo bastante. A gente está conseguindo estabelecer uma rotina de tentar dividir as tarefas de uma forma mais igualitária. Até porque eu estou com uma bebezinha pequena, ela demanda muito mais, então, automaticamente, ele tem que cuidar mais da outra, que é a mais velha, e a tarefa de fazer a comida, de organizar minimamente a casa, ele está assumindo isso. Então é o momento da gente repensar esses lugares da mulher e do casal aí dentro da casa. De repensar essas atividades, a divisão das tarefas domésticas. É uma ótima oportunidade de estarmos juntos, fazendo essas tarefas juntos, dividindo isso de uma melhor forma, estabelecendo o que é dever, como a gente divide isso, como a gente consegue pensar nisso. Porque o casal está ali junto. Está tendo a mesma demanda, o mesmo cotidiano. Não é um que sai e outro que fica na casa, então eu acho que é um ótimo momento para repensar esses papéis sociais, papéis de gênero, dentro do ambiente doméstico. Ao mesmo tempo, eu acho que é pensar isso, de que não dar para dar conta de tudo, se não acaba gerando frustração.
2 – Na semana entre 17 e 25 de março o número de ligações recebidas pelo canal do governo federal que recebe denúncias de violência contra a mulher, aumentou, em quase 9%. Dados do Estado do Rio de Janeiro atestam um aumento de 50% nas agressões. Por que o confinamento leva à violência?
Eu achei muito interessante e muito triste esses dados, quando eu li, que aumentaram 50% no Rio de Janeiro. Quando começou essa história de confinamento, de isolamento, a primeira coisa que veio na minha cabeça foi “vai aumentar a violência doméstica, os casais vão ficar violentos”. A questão é: se o lugar onde as mulheres são mais agredidas, é no ambiente doméstico. Então vamos pensar: no Rio de Janeiro, tem um dado muito interessante, do Instituto de Segurança Pública, do Dossiê Mulher, que foi publicado mais ou menos em 2013, de que o maior agressor e abusador das mulheres, das meninas, era o próprio pai. Esse é um dado muito forte para nós pensarmos que não é o padrasto, não é o tio, não é o avô, é o pai! Então o maior agressor, nos crimes de estupro, é o pai. Então, se você pensar, esse ambiente doméstico é muito mais perigoso para a mulher, aí eu incluo as meninas, do que a rua. Então, se nesse período as mulheres estarão confinadas, mais em casa, mais em contato com esses agressores, obviamente que essa violência vai aumentar. Aí eu fico pensando, a violência doméstica, em relação a casais, mas em relação à meninas também, as filhas, as crianças, eventualmente os filhos também. Mas eu acho que o abuso dos pais, padrastos, em que as meninas são vítimas, com certeza tem aumentado, não só a violência entre casais. Porque é o ambiente onde a mulher é mais agredida. Então se você pegar um estudo sobre lesão corporal contra a mulher, a maioria dos agressores não são desconhecidos, como na maioria dos casos de estupro, as pesquisas mostram isso. Os maiores estupradores das mulheres são geralmente pessoas que ela conhece, geralmente pessoas da família.
3 – Isso mostra que as relações no Brasil continuam machistas e opressoras. O Brasil tem melhorado em algum aspecto nesse drama social nos últimos anos?
Eu acho que não, na verdade piorou politicamente, em relação às políticas públicas de defesa, com esse governo que a gente tem, piorou e muito. Vários movimentos de mulheres que haviam conseguido implementar avanços na área das políticas públicas e que foram desmanteladas no Governo Bolsonaro. O Brasil piorou e muito em relação a isso, pensando no sentido de legislação de políticas públicas.
Mas, por outro lado, eu vejo um avanço em relação à sociedade civil, que eu acho que aumentou muito o número de manifestações em defesa dos direitos das mulheres. As pessoas passaram a falar mais do assunto, da violência contra a mulher. A gente está num âmbito, que eu vejo até no meu Departamento de Ciências Sociais, quando eu entrei em 2010, tinha saído a Juliana Brites, que trabalhava com questões de gênero, e ela voltou para Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas ela saiu e não tinha mais ninguém que trabalhava com gênero, especificamente. Quando eu entrei em 2010, eu era a única pessoa que tratava de questões de gênero no meu departamento. Não só na Antropologia, mas nas Ciências Sociais em geral, na Antropologia, Sociologia e Política. Hoje, quase todas as professoras mulheres ali trabalham com questões de gênero. Eram pesquisadoras que entraram com outras demandas, outras temáticas, mas que ao longo do tempo começaram a dialogar, articular as temáticas que elas pesquisavam, com questões de gênero, vendo que é uma temática que começou a ganhar uma força muito grande, em termos de pesquisa, em termos acadêmicos. Então, até esse ano a Universidade criou o curso que eu até fui professora, o curso lato sensu de sexualidade e gênero, que foi organizado lá na Faced pela coordenação do professor Roney, também foi o primeiro curso desse gênero.
Enfim, então houve um olhar mais ampliado e uma atenção maior para a temática da violência contra a mulher em relação a pesquisa acadêmica, em relação a mídia, mas em relação a políticas públicas, houve uma piora substantiva.
4 – Quais são as saídas para a melhoria desse quadro?
A melhoria desse quadro não tem como não ser via Estado, via política pública. E acho que um pouco, essa crise que estamos vivendo do coronavírus vem mostrar a importância da gestão pública. Que é fortalecimento do Estado, e não o que uma política neoliberal tem feito, que é o enfraquecimento desse Estado. É investir nas universidades públicas, investir em pesquisa, investir em política pública da defesa da mulher, investir nas delegacias da mulher, investir em propostas alternativas de punição para a violência, investir em projetos de extensão. Esse é o caminho oposto ao que tem sido proposto por esse novo governo.
5 – Gostaria de acrescentar algo que não foi perguntado e que você gostaria de dizer em relação a esta temática?
Esse é um momento que estamos passando e ainda vamos refletir muito sobre ele, principalmente nas áreas de Ciências Sociais e de Saúde. Acho que são duas partes que podemos refletir sobre esse momento que estamos vivendo. Primeiro, em relação ao nosso microcosmo, a nossa casa, a divisão das tarefas, como é que é essa convivência. Estamos tendo a oportunidade de conviver com os nossos familiares mais próximos e a gente está tendo a oportunidade de nos relacionarmos com esses familiares de uma forma diferente, porque estamos 24 horas juntos, e talvez este seja o momento da gente repensar a questão da divisão das tarefas domésticas, que inclui criação de filhos, do cuidado com a casa. A questão é a do cuidado. O cuidado da casa, dos filhos e de si. E uma segunda questão, mais macro, é repensar essa política que o mundo tem seguido, e não só o Brasil, da valorização da economia em detrimento das questões e das políticas sociais. É o momento da gente rever isso e pensar políticas sociais. Se a gente não tem um Estado forte, não temos como passar por crises como essas. Se a gente não tem universidade, não tem pesquisa, a gente não tem como vivenciar crises como essas. Então isso é um baque em toda essa política neoliberal que tem sido colocada, de precarização do trabalho, a precarização de todos os serviços públicos, da saúde, da educação, então, o lado oposto que a gente tem que ir. Isso está vindo pra mostrar isso.