Confira entrevista com Prof. Luciano Franco, Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Crianças e Jovens da OAB/JF
O aborto virou tema nacional nesta última semana por conta da ira de grupos conservadores que pregavam que uma menina de 10 anos, estuprada e engravidada pelo próprio tio, deveria ser impedida de realizar o aborto, mesmo que o procedimento tenha sido amparado pela Justiça.
No dia 15 de agosto, a criança teve procedimento negado pelo Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, no Espírito Santo e, no dia 16 de agosto, a militante de extrema direita, Sara Winter, divulgou em suas redes sociais, o nome da menina e o endereço do hospital para onde a criança havia sido transferida, reunindo uma multidão na porta do hospital que protestava contra o procedimento. O fato ganhou as redes sociais e expôs o quanto o assunto é contaminado por preconceitos e visões de mundo que acabam atacando a vítima no lugar de defendê-la.
Para falar sobre o assunto, a APES entrevistou o Prof. Luciano Franco, Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Crianças e Jovens da OAB/JF
1) A negação de uma equipe médica em realizar o aborto mesmo após a decisão judicial favorável à interrupção da gravidez revela o quão desamparadas estão as vítimas de estupro em nosso país. O que determina nossa legislação hoje?
O aborto pode ser realizado nos casos de necessidade, para salvar a vida da gestante; humanitário, no caso de violência sexual; e de fetos anencéfalos, conforme art.128 do Código Penal e jurisprudência do STF. O descumprimento da medida judicial pode ensejar em prisão por parte da autoridade que não a cumpre.
É preciso regulamentação específica dos protocolos de atendimento por parte do Ministério da Saúde, bem como vencer o preconceito dos especialistas, através de uma informação clara e correta.
2) Que avanços precisam ser feitos na legislação brasileira para proteger vítimas e punir criminosos?
É preciso que se regule de maneira clara o aborto legal, bem como instrução dos profissionais de saúde. No tocante à punição, a rapidez na investigação e na valorização do testemunho da vítima é essencial para que casos não fiquem sem a devida punição e as vítimas tenham acesso rápido aos procedimentos.
3) Depois das denúncias, nas redes sociais, de que grupos políticos e religiosos (incluindo um deputado bolsonarista) se manifestaram contra o aborto autorizado, a Promotoria da cidade de São Mateus (ES) investiga a existência de pressão exercida sobre os familiares da criança para que o procedimento não fosse realizado. Como determinada relação entre a política e a religião, paradoxalmente, tem representado retrocessos em relação aos direitos humanos no Brasil?
Infelizmente a interferência moral e religiosa nesses casos sempre aparecerá. Todavia é preciso uma análise humanista, solidária e legal, para que possa garantir que as crianças e adolescentes nessas situações não tenham sua vida, respeito e intimidade ainda mais violados.
4) Percebemos que, no debate público, a identidade e integridade da criança foi desrespeitada de diversas maneiras neste caso, enquanto o estuprador não teve sua identidade revelada e não foi objeto de críticas e denúncias em grupos que se autodenominam pró vida. O que isto revela sobre o estado atual de nossa sociedade?
É uma discussão sociológica e jurídica profunda, que merece um debate amplo, sobre a qual a limitação material da nossa conversa não conseguirá esgotar. O que observamos são movimentos pró-nascimento, uma vez que, por outro lado, observamos baixa manifestação popular pela efetividade na proteção de interesses da infância e juventude. A proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes costumam ficar em segundo plano dos debates políticos, com ausência de políticas públicas efetivas que promovam uma educação integral e inclusiva, assistências sociais e psicológicas, por exemplo. Não basta falar em nascimento sem uma luta constante por efetividade dos direitos de todas as crianças e adolescentes. Num mundo ideal, situações como essa jamais deveriam acontecer, e é esse mundo que nós, como sociedade, devemos lutar para construir.