Nesta entrevista, que faz parte da 115° edição do Travessia, o jornal conversou com o ex-presidente da Andifes e reitor da UFJF, Marcus David. A conversa abordou os impactos dos cortes orçamentários nas instituições federais de ensino e a importância da luta em defesa da recomposição e ampliação do investimento em educação no país.
- Qual é a ligação dos cortes orçamentários com o projeto de país que está sendo construído, atualmente, no Brasil?
Em primeiro lugar, eu tenho dito que a crise orçamentária que estamos vivendo é, sem dúvida nenhuma, a maior crise da nossa história, tanto das universidades federais quanto dos institutos. A redução de recursos é muito impactante, o número que resume isso é do orçamento discricionário que nós temos hoje para fazer a manutenção da universidade, conduzir projetos acadêmicos, políticas de assistência estudantil e para realizar os investimentos. Esse número é menos da metade do que as universidades tinham em 2015, em um cenário atual em que as instituições são maiores que há sete anos atrás. Nós não devemos analisar esse dado apenas sob um aspecto econômico, sob um aspecto de perdas orçamentárias. É aí que eu faço uma vinculação com um projeto de nação que não considera o papel estratégico que as universidades e os institutos federais têm no desenvolvimento econômico e social do país.
O corte orçamentário é resultado de uma decisão política tomada em 2016 de se aprovar constitucionalmente um teto de gastos. Quando o Congresso Nacional tomou essa decisão, ele decidiu por limitar o tamanho do Estado brasileiro dentro desse teto, ou seja, o Estado não poderia crescer além do teto. O que determina o tamanho de um Estado dentro de uma sociedade são muitas variáveis, como a concepção de organização social, dentro do funcionamento de um país. O papel que o Estado vai desempenhar depende de seu tamanho. Então, se eu estabeleço um teto, eu já estabeleci, a princípio, o tamanho desse Estado, que depende do tamanho da economia. Quando é separada uma parcela das riquezas geradas na economia para serem apropriadas pelo Estado para fazer as políticas sociais do Estado, quanto maior for a economia maior será possibilidade do Estado atuar. Mas se o teto de gastos foi fixado, não importa o quanto a economia vai crescer, o Estado fica sempre do mesmo tamanho. O ex – ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, apresentou um gráfico, ainda no Governo Temer, em que justamente o objetivo era o de que o percentual das despesas públicas caíssem em relação ao PIB. Na época nós tínhamos em torno de 21% do PIB destinado para despesas públicas. Já com o teto de gastos a expectativa era de que em 10 anos, de 21% caísse para 15%. Então, o que na realidade está se fazendo é uma redução proporcional do Estado, quer dizer, o Estado não vai crescer, mas a economia está crescendo, logo, proporcionalmente há uma perda. E para que isso funcione economicamente, é preciso reduzir as funções do Estado. Essa discussão deveria ser política e explícita, a população deveria ter sido chamada a discutir isso.
Atualmente, observa – se que as ações que mais estão sendo sacrificadas são: educação, ciência e tecnologia, saúde. Então, quando eu afirmo que a nossa crise orçamentária, na realidade, ela está vinculada a um projeto que reduz o papel da educação é por conta da aprovação da Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos).
As universidades hoje desempenham hoje um papel estratégico para o desenvolvimento do país. Quando você pensa em um país desenvolvido com acesso à formação de qualidade para toda a população, é preciso ter o investimento e a concepção de que é o investimento em educação de qualidade que vai fazer o país dar um salto social e econômico. O que eu posso afirmar é que hoje nós temos, no atual e no último governo, lideranças políticas que querem um Estado menor, com uma educação que atinja apenas uma parcela da população, que a educação superior volte a ser elitista.
Este ano mesmo, no início, voltou a ter tramitação no Congresso uma PEC que permitiria cobrança na educação pública superior. Se voltarmos há três anos atrás, em 2019, nós tivemos o projeto do “Future-se” que era um projeto que claramente mudava o modelo de financiamento das universidades, estas passariam a ter uma forma de financiamento não garantida pelo Estado, mas por instituições privadas. Assim, essa concepção é a seguinte: eu vou reduzir o tamanho do Estado e algumas funções do Estado vão deixar de ser obrigações do Estado e vão ter que apresentar modelos de financiamento alternativos, ou seja, privados.
A consequência disso é a de que a universidade do século passado e até a do início deste século era caracterizada por ser elitista. Quem tinha condições de passar no vestibular de uma universidade pública era a classe média brasileira que fez uma educação básica de alta qualidade privada. Quando é tomada a decisão de reservar 50% das vagas para educação pública, de interiorizar as universidades e colocá – las em todas as regiões do país, o modelo de elitização do ensino superior público foi mudado. Porém, quando é estabelecido o teto de gastos, buscando fontes alternativas de financiamento, o país volta ao modelo anterior.
Quando a asfixia financeira sofrida atualmente pelas universidades se torna inadministrável como está acontecendo hoje, fechando o ano de 2022 com déficit, fazendo sacrifícios imensos, como a redução de programas de bolsas, de assistência estudantil, de serviços terceirizados que na área de gestão de pessoas nós tivemos uma série de medidas que nos proíbem de contratar funcionários, por exemplo, extinção de cargos, começando por motoristas, vigilante, pessoal de limpeza, alegando que essas funções podem ser terceirizadas. Mas esse processo continuou. Hoje nós temos concurso vetado para funções administrativas, como secretário executivo. Portanto, se uma pessoa se aposenta, eu não posso repor, e aí eu sou forçado a caminhar para modelos de terceirização, sendo que com a asfixia orçamentária, não é mais possível terceirizar. Assim, quando as universidades estão próximas da paralisação de suas atividades, por falta de verba, é apresentada uma proposta dizendo que a partir de agora as universidades podem cobrar mensalidade (PL). Um projeto de lei que, ao considerar o perfil do Poder Executivo e do Legislativo, é facilmente aprovado.
- Qual o papel da sociedade civil na construção de um projeto de educação pública oposto ao que está em curso?
Hoje, o grande desafio global é o seguinte: como incluir 3 ⁄ 4 da população mundial que não está inserida num segmento desenvolvido, ampliando produção mundial, produção de riqueza e não acabar com o planeta. O que nós precisaríamos ser capazes de fazer hoje no Brasil seria desenhar um modelo de nação, onde você tem que reduzir a diferença entre os níveis sociais mais baixos e os níveis sociais mais elevados, hoje essa diferença é muito elevada, com uma elite nacional, com um nível de riqueza que quando comparado com os níveis sociais mais baixos da população é possível observar uma distância muito grande.
O que se precisaria é uma profunda conscientização da sociedade. Dar um auxílio de R$600,00 que a elite financeira está aprovando não resolve nada, no máximo impede que a pessoa morra de fome, você nem garante a segurança alimentar dela. O que nós temos que fazer é outra coisa, dar, além de comida, educação, saúde, cultura. Quando se teve esse pequeno movimento na economia brasileira há uns dez anos atrás, uma parcela dessa elite financeira se incomodou, por terem visto “muitas empregadas domésticas viajando para os Estados Unidos”, usando a frase de um ministro. E aí nós precisamos desconstruir outra frase dita por um ministro que a educação superior não é para todos. É exatamente o contrário, eu tenho que encher esse jovem de esperança de que ele pode vir para a universidade, aprender uma profissão, aprender a ser cidadão. E é preciso fazer isso, trazer esse segmento social, e, ao mesmo tempo, não assustar a classe média e a elite financeira brasileira, porque você pode passar a ter uma situação tão absurda, que essas últimas duas classes podem querer tirar os filhos da universidade pública para colocar numa universidade privada.
- O que significa o orçamento secreto para o país e como ele se relaciona com cortes na educação pública?
O orçamento secreto é uma das maiores excrescências criadas no sistema orçamentário brasileiro. A explicação política para isso é a seguinte: é um governo fraco, em termos de capacidade de articulação com o congresso, não tem partido, não tem base nenhuma. O grupo político que ele teve que recorrer era o grupo do centrão, que sempre tenta se beneficiar de cargos e de verbas orçamentárias. Com a fraqueza do governo, ele conseguiu obter boa parte do orçamento, que foi o orçamento secreto. Então, hoje nós temos, no orçamento discricionário da união, as emendas de relator que colocam quase 20% do orçamento discricionário para um relator administrar. Não existe possibilidade de negociação com o orçamento secreto. No último ano do governo da Dilma Rousseff, do orçamento geral da união, 5 bilhões foram destinados a emendas parlamentares. Este ano nós vamos chegar a 45 bilhões. Então, olha a força como o congresso se apropriou do orçamento da união. Quando nós tivemos os cortes, procuramos imediatamente o Ministério da Educação, e o Secretário Executivo do ministério disse para procurarmos um relator, do orçamento 22, o deputado Hugo Leal, para tentarmos negociar com ele parte da emenda do relator, para pelo menos repor o bloqueio que foi feito. Mas a perda que as universidades tiveram foi de 450 milhões, na emenda do relator tem 17 bilhões. Para universidades federais e institutos, nós precisaríamos de 700 milhões. A reunião foi feita com o deputado essa semana, sem garantias.
- Quais os impactos do “Reuni digital” para o ensino das universidades públicas?
Eu avalio que o reuni digital está sendo discutido no pior momento, em primeiro lugar, que é após a experiência de ensino remoto emergencial. Além disso, o motivo é muito ruim. No Plano Nacional de Educação, havia uma meta de ampliação do número de matrículas nas universidades públicas. Como essa meta foi aprovada em 2014, em 2024 você completa os dez anos do PNE e quase nenhuma meta do plano foi cumprida, como a das matrículas. Tenho medo até de uma responsabilização legal, pois o plano prevê uma penalização para o gestor pela não realização das metas, tendo em vista, neste caso, que o Governo Federal não se esforçou para ajudar no cumprimento dos objetivos. Assim, eles tentaram um plano: tentar aumentar a matrícula através da educação à distância. Eu não tenho preconceito nenhum, acho que temos que debater as técnicas digitais de educação, sem dúvida nenhuma nós vamos ter que pensar em como incorporar isso nas nossas rotinas. A pandemia mostrou que nós temos a possibilidade de utilização de tecnologias que podem ser incorporadas nas práticas pedagógicas, então acho que nós temos que estar abertos para essa discussão. A combinação de educação presencial e educação à distância também precisa ser precedida de uma ampla discussão sobre o modelo da educação superior que pretende se implantar no país. Eu também faço a defesa da natureza da presencialidade. na formação acadêmica é essencial, o aluno não aprende apenas na relação com o professor em sala de aula, são todas as experiências que você tem que te enriquecem, práticas de iniciação científica, estágio, monitoria, atividades políticas e representação estudantil, iniciação cultural, o ambiente, os debates, os seminários, a interação com os estudantes e os professores é um conjunto que compõe a formação profissional e cidadã do estudante. talvez não seja possível garantir a presencialidade para 100% dos estudantes, como o exemplo de um professor ou de um aluno que vive em uma cidade do interior de algum estado, em que é melhor oferecer a formação à distância a não oferecer nada para essa pessoa. nós não podemos abrir mão da natureza da presencialidade, mesmo que em alguns casos nós precisemos lançar mão dela.