Nesta entrevista da série “Pandemia e Política”, conversamos com a professora de sociologia do IF Sudeste MG, Karine Fernandes de Carvalho, sobre a tentativa de desmonte da ciência pelo governo Bolsonaro. Karine fala também sobre o significado política dos ataques às ciências humanas e sobre a necessidade de entidades e instituições se mobilizarem em defesa da pesquisa pública.
1- Nos últimos anos, as pesquisas acadêmicas na área das Ciências Humanas no Brasil têm sofrido ataques recorrentes. Qual teria sido a motivação do MCTIC em voltar atrás em sua decisão de excluir a área de humanas das prioridades de projetos de pesquisa da FINEP e CNPq, até 2023?
R: Estamos assistindo ao desmonte das Instituições de financiamento à pesquisa em todas as áreas. Porém, no que diz respeito às Ciências Humanas, assistimos o completo descaso e o crescimento do discurso segundo o qual tal área não justifica o “volumoso financiamento” por não produzir o que o País precisa. Estamos diante de uma ideologia que acredita que o investimento em ciência deve ser direcionado às pesquisas que proporcionam retorno imediato. Assim, as Ciências Humanas são tratadas como algo dispensável, não é importante para o desenvolvimento tecnológico e social do país, segundo o Presidente da República e o seu Ministro da Educação.
Portanto, quando o MCTIC volta atrás na sua decisão e reconsidera a presença das Ciências Humanas nos editais do CNPQ e da Finep, não penso que seja para valorizar a área, ou porque pensam que as Ciências Humanas contribuem com o desenvolvimento do país. Esse recuo se deu pela forte mobilização de 60 Entidades Científicas que se juntaram à SBPC ao assinarem carta externando profunda preocupação com a retirada das Ciências Humanas dos editais e pedem a revogação da portaria original. Mas, infelizmente, a CAPES mantém a alteração nas regras de financiamento para as Ciências Humanas.
Diante disso, vemos que a mobilização das Entidades Científicas e das Instituições de Ensino Superior é fundamental para continuarmos resistindo às atrocidades cometidas por esse desgoverno no que diz respeito à produção do conhecimento em nosso país e à Educação em todos os níveis.
2- Você acredita que o governo tem se aproveitado do caos instaurado no Brasil e no mundo, em decorrência da pandemia do coronavírus, para tomar decisões que sempre compuseram suas prioridades?
R: Não tenho dúvidas quanto a isso! O governo se beneficia deste momento em que estamos desmobilizados politicamente para implantar a sua política baseada no desmonte de todas as instâncias que promovem o que restou do bem estar social no país. O povo brasileiro está sendo atacado ferozmente pelo governo que privilegia a estratégia da necropolítica em suas decisões, e no seu discurso de ódio ao pensamento que não segue sua cartilha baseada no autoritarismo.
3- Como os recorrentes ataques à área de humanas afetam o desempenho dos Institutos Federais?
R: Os infindáveis ataques à área das humanidades destrói o que temos de mais valoroso na Educação praticada nos Institutos Federais, que é a possibilidade que os nossos alunos têm de escolher o caminho que querem seguir. Se apresentarmos só um lado da ciência e sua aplicabilidade imediata, deixamos de mostrar aos nossos alunos que outro tipo de ciência existe.
Assim, a diversidade do conhecimento e o que cada área pode proporcionar deixa de ser exercido, e nossos alunos não se veem como agentes críticos de sua própria história. Deixamos de lado a formação humana que todo e qualquer profissional deve ter. Os Institutos Federais foram criados a partir do ideal de integralidade da formação do sujeito. Se tirarmos as humanidades do processo ensino-aprendizagem, formaremos homens e mulheres que pautam suas vidas pela automaticidade, pelo conteudismo, e não formaremos homens e mulheres comprometidos com o verdadeiro conhecimento, e em usar o conhecimento de forma humana.
4- Qual você acredita ser a motivação do governo em recorrentemente desqualificar e cortar recursos financeiros das pesquisas acadêmicas na área de humanas?
R: Vemos no governo Bolsonaro, desde o seu início, o esforço de desmontar todas as estruturas de produção de conhecimento, seja da área de humanas ou outra área. Isso fica claro, pois em plena pandemia da COVID-19, há pesquisadores da área das Ciências Biológicas que perderam suas bolsas de mestrado ou doutorado. Os laboratórios sequer têm água para os pesquisadores lavarem as mãos, falta energia elétrica para o funcionamento dos equipamentos de pesquisa. Especialistas da área de virologia estão trabalhando sem bolsa para se sustentar. Estamos diante de um governo que pratica a política do desmonte da ciência e da negação do conhecimento científico.
Mas no que diz respeito às Ciências Humanas, o corte de recursos se faz, em primeiro lugar, pelo fato desta área ser baseada na produção do conhecimento crítico e no aprender pensar criticamente para entender as estruturas de dominação da sociedade. E quando produzimos conhecimento com este viés, contribuímos com a formação de sujeitos conscientes de seu protagonismo na transformação da sua realidade. Os professores, principalmente os das disciplinas da área das Ciências Humanas, a todo o momento são chamados de doutrinadores, como uma maneira de desqualificar o nosso trabalho e também nosso campo de conhecimento.
E em segundo lugar, temos uma concepção de ciência por parte deste governo que a vê somente a partir de sua aplicabilidade. Para que serve tal estudo? E para que servem os estudos produzidos pelas Ciências Humanas? Saímos de um modelo misto de produção do conhecimento para um modelo baseado na soberania da técnica em detrimento do conhecimento científico. O texto da portaria nº 1122 de 19 de março de 2020 ressalta as tecnologias estratégicas (da tecnologia espacial à segurança pública), Inteligência Artificial utilizada para reabilitação, tecnologias de produção (indústria, agronegócio, serviços) e tecnologias para o desenvolvimento sustentável e para a qualidade de vida (saúde e saneamento básico). Não quero dizer que tais áreas de tecnologia não são importantes, mas o meu ponto de crítica é o modelo de Ciência e Tecnologia utilizado por este governo. Um modelo unilateral e capenga.
Para este governo, investir na produção de conhecimento na área das Ciências Humanas é usar os recursos orçamentários e financeiros de maneira irracional, pois este tipo de conhecimento não nos leva a lugar algum.