Com mais uma matéria pertencente à série de entrevistas da Campanha que marca a Semana da Consciência Negra, o SINTUFEJUF e a APES conversavam com Andressa Carvalho, integrante do coletivo Vozes da Rua e poeta marginal. Andressa falou sobre o cenário artístico para pessoas pretas, sobre o machismo que existe e também sobre como esse cenário pode, e vem mudando.
Fale um pouco sobre o Coletivo Vozes da Rua.
Andressa: O Coletivo Vozes da Rua é um coletivo de manifestação da cultura hip-hop, negra e periférica, e pra gente essas três coisas acabam sendo uma coisa só. A cultura hip-hop é preta e é periférica.
Como ficaram essas manifestações culturais durante a pandemia?
Andressa: O Vozes durante a pandemia sofreu muito pela falta de contato com o público, mas isso não impediu de realizar alguns projetos. Por exemplo, o Agosto Negro aconteceu em agosto de 2020, com discussões sobre mulherismo africano e o deste ano foi sobre a “reforma agrária do ar”, que é sobre a forma como a comunicação mudou, fazendo uma alusão ao ar pelas ondas do rádio e de internet que nele estão presentes, e como muitas da vezes a comunicação precisa de uma reforma e de dar voz a comunidade. Isso foi muito simbólico para nós porque o coletivo surgiu na rádio comunitária do bairro de Santa Cândida, a Rádio Mega, e vem se expandindo para outras comunicações como podcast e lives. A gente também fez um Sarau online nesses eventos. As atividades não ficaram paradas, mas tudo foi online. Eu e os outros membros do coletivo queremos muito que isso (a fase de isolamento) passe, porque temos a tendência de ir em locais como escola e penitenciárias que é um contato muito importante, e nesses locais nossas lives não chegam. Mesmo com a live o público nem sempre tem acesso por falta de computador, internet ou um ambiente tranquilo. Foi também como um enfrentamento a pandemia que o Vozes, junto do Levante Popular da Juventude e do MST, recolheu cestas básicas que foram distribuídas em sua maioria no bairro do Santa Cândida, mas, por terem membros espalhados por todos os lados, toda vez que descobriram alguém que precisava, os membros do coletivo davam um jeito de ir entregar a cesta básica. Era o jeito de garantir o mínimo de segurança alimentar.
Ainda é feita a campanha através de arrecadação de alimentos e da chave pix.
Como é ser artista e mulher preta no Brasil de hoje?
Andressa: É o que Racionais já dizia e é um fato: a pessoa preta no cenário artístico tem que ser duas vezes melhor, às vezes até mil vezes melhor. Na minha vivência e na vivência com o coletivo eu percebi que tem muitos negros dentro desse movimento, mas ninguem vive de arte unicamente. Eu amo ser artista e reconheço a importância que isso tem, mas a poesia nunca me deu o que comer. Os artistas têm que se preocupar com a arte, com o cuidar do coletivo e também com estudo e trabalho. Às vezes o Vozes recebe várias propostas de eventos legais e temos que recusar por conta dos nossos trabalhos fora do coletivo. É por isso que temos que ser três, quatro, cinco vezes melhor. Para uma pessoa branca, que nasceu em um berço em que há condição de não pensar em contas e colocar comida na mesa é muito mais fácil pensar na arte, estar atenta a editais e conseguir escrever um projeto. Muitas vezes o coletivo se uniu em conjunto para escrever um projeto e por falta de tempo não conseguimos que o documento ficasse perfeito. E mesmo assim estamos correndo atrás. O Slam de Perifa, que é organizado pelo Vozes, eventos de break, sempre que aconteciam apareciam pessoas interessadas, mas era trabalhoso. O online não diminuiu essa responsabilidade, tem que ter internet, iluminação, todo um suporte.
Como é a recepção das pessoas com a arte?
Andressa: Ainda existe muito preconceito, mas sempre tem alguém que chega e elogia nossa poesia, elogia nosso trabalho e isso faz toda a diferença. Minha família escuta minhas poesias e sempre elogia e apoia bastante, mas é algo que alguém possa me perguntar “o que você faz da vida?” e eu vou poder dizer que sou artista. Viver da arte é difícil, mas pra uma pessoa preta é ainda mais difícil.
Qual é a relação do Slam com a arte negra e periférica?
Andressa: Principalmente no Brasil o Slam é uma arte que anda muito junto com a cultura hip-hop e é uma arte preta. Slam é muito sobre vivências, sobre falar o que você sente e ser escutado. Eu só escrevo sobre o que eu vivo e acredito que muitos, se não a maioria, dos poetas são assim. Slam é a nossa forma de ser escutado.
Qual é a importância da arte preta?
Andressa: Além do reconhecimento da nossa história e do pertencimento, a arte é uma forma de comunicação. Às vezes, se você parar pra falar de política em um boteco, às vezes ninguém vai escutar, mas eles vão ver um grafite ou vão ver alguma intervenção artística que vai fazer pensar sobre aquele assunto. Quando eu tô fazendo poesia na rua, com certeza vai passar alguém que vai escutar e vai se identificar com aquilo.
Como é o machismo nesse cenário?
Andressa: O cenário é machista. Quando se fala rap você não imagina uma mulher fazendo, quando se fala hip-hop você não imagina uma mulher fazendo. Já cogitei diversas vezes ir com uma roupa diferente recitar, mas sempre mudei de ideia e fui com o meu vestido tubinho, por mais que eu já tenha escutado “mas é ela que vai fazer poesia?” ou “é ela que é do rap”? Não perco a minha identidade e não vou perder por conta disso, até porque eu acho que isso já está mudando, aos poucos, mas está. Esse tipo de coisa nem passa pela cabeça da galera mais nova que entra no coletivo.
E como fica o preconceito nessa questão?
Andressa: O preconceito não é de agora. Desde a época da escravidão as pessoas, e até mesmo os negros, pensam que preto é pra trabalhar e que ficar pensando em cultura e arte é vagabundagem. Às vezes vem até da família o questionamento de porque estamos fazendo arte e não procurando um trabalho.
Isso pode mudar?
Andressa: Assim como o conceito de cultura tem sofrido reforma e agora a arte não são só apenas os quadros renascentistas que estão na Europa, a gente tem mudado o conceito de arte. Até o conceito de beleza. A gente precisa se conhecer e o movimento hip hop nos ajuda. Eu sempre falo que ninguém melhor do que a gente pra ajudar a gente. As universidades e prefeituras podem nos ajudar através de editais e programas de incentivo, mas o que nos mantém vivos é repassar isso para outras gerações, é dar voz aos pretos, mostrar que podemos tudo e fazer eles se reconhecerem como tal. Se der voz, a gente alcança mais pessoas e, se a gente alcançar mais pessoas, a gente fica mais forte.