Desde o início de março, a APES se encontra em campanha em defesa da vida e dos direitos das mulheres. Dando continuidade aos trabalhos realizados no 8M Unificado, lançamos agora uma série de entrevistas com mulheres que atuam nos diversos campos políticos, revelando a multiplicidade de formas, perspectivas e possibilidades que o feminismo abarca.
A escolha das entrevistadas foi motivada pelo desejo de vocalizar algumas das principais bandeiras do feminismo hoje – ainda que esta escolha não esgote todas as demandas e personagens que compõem o movimento. Na defesa dos direitos da classe trabalhadora, na especificidade da luta das mulheres camponesas, na força dos coletivos e movimentos no âmbito das instituições de ensino, muitas mulheres têm contribuído para o debate e o crescimento da luta em defesa de todas.
Na primeira entrevista da série, conversamos com Lucimara Reis, professora de História, mestranda em Serviço Social pela UFJF e integrante do Fórum 8M/JF. Confira.
1- O presidente Jair Bolsonaro criou o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, nomeando para o comando deste Damares Alves. Damares se mostra ativante contra pautas feministas, com declarações polêmicas quanto aos direitos das mulheres. Como resistir? Tendo em vista que, nas instâncias superiores, aquela que é a única representante mulher, ativamente ligada ao governo, apresenta ideias que vão na contramão do movimento feminista.
Fazendo o debate de ideias e tendo ações de enfrentamento. Apesar de eleito, portanto, tendo tido a maioria dos votos, o atual governo não representa o todo da sociedade brasileira. Uma parcela, sim. O Brasil foi forjado na violência, desde a chegada dos Portugueses, o genocídio indígena, a escravidão, a miscigenação pelo estupro compõem o quadro de uma nação calcada em bases autoritárias e patriarcais. Dito isto, é possível compreender que o atual governo fale para setores específicos dessa sociedade que não romperam e não querem romper com essa lógica que os privilegia, tanto na esfera privada, quanto na esfera pública.
O Governo Bolsonaro coloca a frente do novo “ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos” alguém que, no mínimo, não tem competência para um cargo de ministra de Estado por professar sua religião na forma da política, nada contra a religião, tudo contra a confusão de valores específicos de uma religião com políticas de Estado. Outra herança dos tempos coloniais.
A balança da sociedade está longe do equilíbrio no que diz respeito as relações de gênero, embora muitos avanços tenham ocorrido.
Creio que boa parte dessa ofensiva conservadora que obviamente não está deslocada de uma base material, econômica em fase ultraliberal, vem de encontro a esses avanços. Não é compatível com uma política de retirada de recursos públicos de setores essenciais a reprodução da vida, que a luta por saúde pública de qualidade, escolas integrais, creches e direito a moradia, por exemplo, tenha força e protagonismo das mulheres. Damares, enquanto ministra, prega a submissão. Ao não combater com veemência a violência de gênero e por outras vias até estimulá-la, coaduna com repressão sexual enquanto forma de silenciamento desse segmento da classe. Porém, vejo que é um caminho sem volta, o feminismo não é algo não palpável ou ume teoria estéril ele representa a luta das mulheres no sue dia dia, ainda que tenhamos que avançar na forma de comunicar isto. A luta das mulheres está intrinsicamente ligada à luta do conjunto da classe trabalhadora, quando esta perde direitos perdemos duplamente. A violência de gênero é agravada pela crise, não vejo saída que não a luta organizada que perceba essa composição de classe que inclui gênero e raça.
2- Temas como a descriminalização do aborto e o fim da cultura do estupro sempre se mostraram como tabus ou invisibilizados para a sociedade brasileira. Como o movimento feminista debate tais questões, diante de ideias conservadoras em voga na atualidade?
As ideias conservadoras sempre estiveram presentes em nossa sociedade, a novidade, ao contrário, é a ação dos movimentos em quebrar a barreira do silêncio e exigir ações governamentais e civilizatórias para que essas aberrações deixem de ocorrer.
Pensando apenas na realidade brasileira, tivemos a pouco uma audiência pública no STS para tratar da temática do aborto, foi um momento importante de visibilidade deste debate. A reação veio violenta, mulheres que estiveram à frente da tribuna, pesquisadoras, até mesmo pastoras foram ameaçadas de morte por fazerem, não a defesa do aborto, mas defesa da vida das mulheres e seus direito de escolha, que hoje é exercido pelas que tem capacidade de pagar. Novamente observamos que a hipocrisia do debate tem rastros raciais e de classe, pois as mulheres que não têm condição de pagar muitas vezes assinam uma sentença de morte, mas quem liga para as mulheres negras e pobres que morrem.
As relações de poder exercidas através do estupro e do feminicídio fomentam a política da coerção e da submissão, por conta disso, é muito lenta a ação do poder público em coibir esses crimes. Está mais que provado que não basta apenas punir, é preciso investir em novas formas de relação na sociedade, para tanto a educação é fundamental. O máximo que o Estado se presta, quando se presta, é prender, quando é que vamos prevenir, deseducar o machismo nosso de cada dia? Esse tipo de ação o movimento feminista tem se prestado, deseducar o machismo dentro de um Estado estruturalmente patriarcal, é uma luta difícil, mas vejo avanços. Temos um longo caminho a trilhar, em tempos de Damares podemos achar que estamos estagnadas, mas basta olhar pra trás pra percebermos o caminho feito. Há um legado de lutas deixado pra nós, seguirmos lutando é passá-lo a frente, e avançar… você já corrigiu aquela “inocente” piada machista hoje?
3- Movimentos como Ni Una Menos (Nem uma a menos) e a perfomance “o violador é você”, que dão visibilidade ao feminismo e às suas reivindicações, vêm sendo recorrentes pelo mundo. No Brasil um exemplo deste foi o movimento “Ele Não”, que reuniu mulheres em manifestações por todo o Brasil contra a eleição do então candidato à presidência, Jair Bolsonaro. Após mais de um ano destes atos, é possível perceber maior engajamento e adesão de mulheres ao movimento feminista?
Creio que sim, não é pouco dizer que o maior movimento de rua contra Bolsonaro durante as eleições foi protagonizado por mulheres. E caro leitor, se pensa em dizer que não era a hora de dar enfrentamento ao racismo, a LGBTFOBIA ao racismo e a misoginia, o convido a refletir quando será? “Ah, mas a sociedade é conservadora”. Então aceitamos? Tem gente que tá no aguardando o momento certo desde 1500 se reproduzindo em privilégios.
É preciso dar enfrentamento a este desgoverno protofascista. As mulheres têm estado a frente de lutas por moradia, terra, empregos, serviços públicos. O governo Bolsonaro é uma máquina de misoginia e desrespeito. Percebo que a pauta das mulheres tem se colocado para além das questões da violência de gênero, porém, sem nunca a esquecer, mas também nas pautas econômicas, nossas economias estão sendo espoliadas junto com nossos corpos.
O Atual governo verbaliza seus preconceitos, criando um lastro que alimenta a violência simbólica e física.
Essas movimentações de impacto são importantes, pois dão dimensão aos fatos, importa com tudo o trabalho de base nas periferias onde está a segregação se configura. Apontar que a opressão de gênero é estrutural como aponta “o violador é você”, quando aponta desde o cidadão, a igreja, a polícia e o Estado é fundamental.