Dando sequência à série de entrevistas da Campanha que marca a Semana da Consciência Negra, o SINTUFEJUF e a APES entrevistaram Bruna Rocha, ativista travesti negra e especialista em Gênero e Sexualidades pela UFJF. Durante o diálogo Bruna falou sobre preconceito, transfobia, a importância do Dia da Consciência Negra e da luta por direitos, trabalho e cidadania. Confira:
O que o Dia da Consciência Negra representa para você? Qual a importância desta data?
Bruna Rocha: O dia 20 de novembro, em 2011, já no século XXI, é instituído o dia da Consciência Negra (Lei nº12519) por conta da morte de Zumbi dos Palmares que aconteceu no século XVII, por volta de 1695. Se pararmos para pensar, essa é uma luta que acontece desde 1500, com a migração forçada dos povos africanos para territórios brasileiros. Então, a importância deste dia é entender que em 1888 nós tivemos uma lei com apenas dois artigos (lei n. 3.353, mais conhecida como lei Áurea). Artigo 1: é declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil. Artigo 2: Revoga-se qualquer disposição em contrário. Ou seja, não houve indenização, não houve capacitação, formação da população negra que deixou de ser escrava. Desta forma, pensar no dia da Consciência Negra é pensar que nós estamos lutando por direitos iguais, cidadania, garantia de políticas públicas a uma população a quem foi negada todos os seus direitos ao longo de toda a história da civilização moderna do Brasil
Quais as principais barreiras enfrentadas pelas mulheres trans e negras? Como quebrá-las?
Bruna Rocha: Quando falamos em mulheres negras, hoje em dia, estamos vivendo um movimento de fluxo contrário à formação, à educação profissional. Mas, historicamente, os lugares desenhados a mulheres negras eram os trabalhos de maior esforço físico e menor capacidade intelectual, haja visto que ao longo de toda nossa história, a grande maioria das mulheres negras desenvolveu o trabalho de empregada doméstica. E quando nós falamos na população de travestis e transsexuais negras, nós temos a mão de obra mais barata do mercado. Porque além de não conseguir trabalho, além de não conseguir posição no mercado formal, elas têm que se prostituir, e o valor do mercado sexual para as pessoas negras travestis e transexuais é ainda menor que das travestis e transexuais brancas com cabelos lisos ou alongados. Então nós temos que entender que existe uma dicotomia muito grande entre mulheres brancas e mulheres negras e travestis e transsexuais brancas e travestis e transsexuais negras. Esse movimento é histórico, acontece ao longo de toda a vida e deve ser muito bem observado pelos analistas sociais. São discussões feitas muito a fundo, estão sendo trabalhadas, mas devem ser muito bem olhadas ao longo da história. Nós temos as mãos de obra mais baratas do mercado, das mulheres negras, das mulheres trans e das travestis.
Como lutar pela garantia de direitos da população negra e trans? Existem políticas públicas específicas para esse público? O que ainda falta?
Bruna Rocha: Lutar por garantia de direitos é entender que nós temos uma população que historicamente foi marginalizada, historicamente foi diminuída e essas pessoas estão lutando por seus direitos, para ocupar os seus lugares e pela garantia de acesso. Quando pensamos em lutar por direito, pensamos em lutar por políticas públicas que garantam não que essas pessoas apenas entrem nos lugares, mas que elas tenham condições de se manterem lá. Isso historicamente foi negado à população negra. Nós pensarmos hoje em dia em cotas raciais em serviços públicos e universidades, em cursos técnicos, é entender que essa população historicamente negada de direitos precisa ocupar determinados lugares para no futuro ocupar determinados postos de trabalho e com isso gerar uma cadeia produtiva de pessoas que se educam, formam e trabalham em espaços os quais lhes foram negados ao longo de toda a existência. Pensar em políticas públicas é pensar em cotas, formação, capacitação e que o governo tem o papel de garantir cidadania a população negra e a população trans da mesma forma que garanta a outra grande parte da nossa população.
De acordo com o Atlas da violência de 2021, 77% das vítimas de homicídios no Brasil são pessoas negras. Em 2019, as mulheres negras representavam 66% do total de mulheres mortas no país. Em 2020 foi registrado um aumento de 43% de assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em relação ao ano anterior. O que estes dados significam para você?
Bruna Rocha: O Brasil é o país que mais consome pornografia LGBTQIA+ no mundo. O Brasil é o país que mais produz pornografia LGBTQIA+ no mundo. O Brasil é o país que mais usa serviços sexuais no mundo e ainda assim é o país que mais mata pessoas travestis e transsexuais no mundo. A mesma população que mais usa, que mais consome, que mais ostenta o mercado, é a população também que mais mata. As violências contra as pessoas LGBTQIA+, principalmente trans e travesti não diminuem, elas se tornaram públicas com o avanço da comunicação e advento da internet, mas isso vem acontecendo ao longo de toda a nossa história e deve ser cuidada e vigiada e o poder público tem obrigação de dar respostas efetivas.
Você sente que ainda há um longo caminho a percorrer na luta contra o preconceito?
Bruna Rocha: A luta pelo preconceito no Brasil começa em 1500 e vai se perpetuando ao longo de toda a nossa história. Não falo apenas do preconceito racial. Apesar de estarmos na Semana da Consciência Negra, discutindo o preconceito racial, nós temos que lembrar que historicamente o Brasil é um país homofóbico, misógino, gordofóbico, é um país onde as minorias são segregadas da maioria dos seus direitos e violentadas diariamente. Essa minoria vem lutando, guerrilhando, crescendo, mas ela sempre vai estar na condição de minoria por conta dos preconceitos históricos, que já vem enraizado na nossa formação enquanto pessoa e isso deve ser trabalhado. Enquanto nós tivermos a necessidade de ter um Dia da Consciência Negra, um Dia da Visibilidade Trans, um Dia do Orgulho LGBTQIA+ nós temos a necessidade de lutar. Seia uma utopia pensar não na existência desses dias, é utópico, mas é necessário nós lutarmos hoje para que um dia essas datas não sejam tão importantes mais, porque nós teremos uma população consciente, digna em direitos, capaz de entender que o negro deve ser respeitado, que o LGBTQIA+ deve ser respeitado, que o gordo deve ser respeitado, que o deficiente deve ser respeitado, então enquanto nós tivermos datas comemorativas para lembrar de tudo o que aconteceu, é sinal de que nós temos ainda muita luta para percorrer, muita luta para seguir e continuar lutando. E essa é uma luta que vale a pena, para garantir direitos às pessoas negras, cidadania às pessoas LGBTQIA+ e a gordos e deficientes. É uma luta que vale a pena ser lutada diariamente, que a gente acorda lutando e dorme lutando, ocupando espaços seja por força ou direitos adquiridos.