Finalizando o Ciclo de Entrevistas Mulheres de Luta, conversamos com Carolina Bezerra, professora do Colégio de Aplicação João XXIII e integrante do Coletivo Marielle Franco – UFJF.
1- O Coletivo Marielle Franco se propõe a dar o apoio necessário àquelas que são vítimas de assédio dentro da Universidade. Como, geralmente, se dá o contato dessas mulheres com o Coletivo, tendo em vista que muitas delas não denunciam tais violências por temerem a represália?
O coletivo foi criado porque algumas professoras, mais sensíveis, e algumas professoras que trabalhavam diretamente ou transversalmente com essas temáticas, começaram a ser procuradas por alunas da Universidade que iam relatar casos de assédio, violência sexual.
A ideia do Coletivo era que a gente pudesse [atuar], nesse grupo de professoras e na correlação de forças, com os professores assediadores, porque aí nós estaríamos hierarquicamente como docentes, assim como eles. A gente percebe que a relação do assédio na Universidade está relacionada também a uma dimensão de poder e uma relação hierárquica. Então o coletivo foi criado, depois ele virou um projeto de extensão, nós tivemos várias ações, como reuniões em grupos de pesquisa e um evento com mais de 500 inscrições. E criamos os canais: página, email e Instagram do Coletivo.
Mas a gente percebe que essas alunas chegam até nós a partir do momento que elas vão criando redes de solidariedade na Universidade.
É importante colocar que a Universidade tem uma Ouvidoria Especializada e tem um canal também, que tem realizado esse trabalho. O que acaba acontecendo, porém, é que muitas vezes, ao invés das vítimas saírem mais fortalecidas, elas passam por um processos de revitimização, pela própria natureza desses processos, e alguns deles têm dado resultados que minimizam a ação desse docente. Isso acaba gerando nas vítimas um sentimento muito ruim, porque novamente elas têm que relatar o que elas vivenciaram, e também, como as penas são consideradas leves e brandas pelas vítimas, como advertências, não se cria um clima na Universidade, na perspectiva de garantia de Direitos Humanos, direitos sexuais das mulheres, direitos sobre o próprio corpo, que vá construir um outro olhar em relação à essas vítimas.
A partir do momento que essas penas são brandas, e já tem uma série de questões que as meninas tem que superar para poder delatar esses casos, isso acaba fazendo com que outras vítimas, ao verem como se dão esses processos, acabem decidindo não delatar, não tornar público, nem procurar professores, nem vias na Universidade.
É muito difícil! Juiz de Fora é uma cidade muito conservadora, ligada à famílias, à grupos, à sobrenomes. Essas meninas sabem que, a partir do momento que elas se expõem, elas podem comprometer a carreira acadêmica, a carreira profissional. E tudo isso porque a sociedade ainda é muito machista, e é um tema que tem um tabu muito grande. É muito mais fácil olhar para essa vítima como aquela que vai, a partir do momento que decide não mais se silenciar, e decide trazer a tona essa discussão, ela é vista como um corpo na Universidade que está atrapalhando uma harmonia.
Essas represálias acontecem. E não só as represálias, mas o clima de não-acolhimento que se instaura nas unidades tem feito com que a maioria das vítimas desista do curso. Ou quando conseguem ter um apoio, um respaldo, concluir seus cursos de graduação ou pós-graduação, elas vão embora também, elas vão prosseguir os estudos em outras universidades.
2- Como são construídas as ações do Coletivo dentro da Universidade, tanto com a intenção de reduzir os assédios sofridos na instituição, mas também objetivando um ambiente acadêmico mais igualitário?
O Coletivo vem trabalhando no sentido de fazer esse acolhimento e esse acompanhamento dos processos, algumas professoras têm se debruçado em analisar e estudar esses processos. E o nosso projeto de extensão pretende devolver para a Universidade quais são as estratégias a partir das pesquisas, a partir das questões que estão sendo discutidas, não só em âmbito nacional, mas em âmbito internacional.
A nossa ideia é produzir uma cartilha de orientação a essas vítimas. A violência é uma categoria que vem sido muito discutida dentro da Antropologia. Às vezes, essas opressões são tão naturalizadas, que a própria vítima demora um determinado tempo para perceber que aquilo que ela está vivenciando é uma violência, é um assédio.
O Coletivo busca pensar estratégias dentro da Universidade, de formação dos docentes, de pensar disciplinas sobre essa temática, de pensar outras formas de punição. Não em uma ótica punitivista, desse professor assediador, mas numa ótica mais educativa, numa ótica que vai pensar uma outra formação, que vai pensar uma desconstrução desses lugares de masculinidades violentas, um termo que vem sendo muito usado, “masculinidades tóxicas”.
É uma luta árdua, que precisa estar crescendo, mas cada uma de nós, dentro das suas possibilidades, as professoras vêm trabalhando nas suas frentes, na orientação de alunos, duas de nós participamos da especialização em relações de gênero e sexualidade. Eu e a professora Joana Machado, que estamos fazendo essas discussões.
Mas do ponto de vista institucional, é necessário que a Universidade pense nesses caminhos, que são: a via educacional e a via comunicacional, com campanhas, com trabalhos de prevenção, com trabalhos de esclarecimento, como a cartilha, e criação de protocolos para se pensar em como lidar e encaminhar essas questões.
Nós ainda estamos muito distantes de ter um ambiente igualitário e equânime no espaço acadêmico.
3- Você considera que há abertura suficiente para tratar de pautas feministas no ambiente universitário?
Não, não há espaço suficiente ainda, por conta de tudo aquilo que eu venho apontando. A gente tem ainda, dentro das relações de poder na Universidade, padrões do que se espera dessa mulher, não só dela, mas também dessa mulher em um ambiente acadêmico, em que se tem disputas epistemológicas, intelectuais.
Às vezes a violência perpassa, além da sexualização daquele corpo, além dessa relação de assédio que é construída, a dimensão intelectual de inferiorizar a mulher, de inferiorizar aquele corpo feminino que a sociedade tem o costume, e vê muito mais facilmente num outro lugar, do que num lugar de produção intelectual e acadêmica.
São disputas. Ao mesmo tempo a Universidade vai reproduzir padrões de comportamento, de heteronormatividade, de sexualidade, de moralidade sexual, dentro do ambiente acadêmico. Só que se somam a isso, nesse ambiente, essas disputas, esses mitos, esses trâmites, esse currículo oculto que existe nas Universidades, com relação às carreiras escolhidas, as disciplinas consideradas masculinas e femininas. E também o que se espera da formação profissional e de comportamentos de homens e mulheres no ambiente acadêmico.
4-É possível perceber, desde o início da atuação do Coletivo na Universidade, que há um maior interesse por pautas feministas por parte das mulheres que integram a instituição?
Eu não acredito que esse interesse maior seja por conta do Coletivo. Na verdade, o próprio Coletivo já vem como uma resposta à mobilização dos movimentos feministas nos últimos anos, especialmente aqui em Juiz de Fora, mas eu diria nas últimas décadas, do ponto de vista de um histórico do movimento feminista.
A gente tem novos movimentos feministas, uma mobilização dos movimentos sociais, juntamente com a mídia, juntamente com as redes sociais, que tem trazido e dado visibilidade à questão do assédio, e de todas essas discussões. Então, as feministas e as teorias feministas têm, por meio das mídias e por meio da militância, trazido outros olhares e outras categorias de compreensão, em relação ao que é estupro, ao que é assédio, o que é a violência.
O Coletivo surge por conta desses movimentos e dessas buscas de articulação entre os conhecimentos dos movimentos feministas e sociais e dos conhecimentos teóricos, epistemológicos, acadêmicos, sobre análise social das relações de gênero e de violência contra a mulher, violência de gênero na sociedade brasileira.
A Academia vai sofrendo uma influência desses movimentos feministas. Se nós pensamos no “chega de fiu fiu”, “o meu primeiro assédio” e várias campanhas que tem trazido processos de empoderamento para essas mulheres romperem silenciamentos históricos. Acho que tem toda essa mudança de mentalidade, e ainda mais um contexto político extremamente reacionário, extremamente retrógrado.
A gente tem discussões e pautas trazidas pelos movimentos feministas nas décadas de 80 e 90, que agora a gente vê um retrocesso grande e significativo. Então acho que a Universidade está olhando para essa sociedade e vendo uma demanda em número de dados, de epistemicídeos, de feminicídios, de violências contra a mulher, contra essas pesquisadoras e essas intelectuais que vão buscar estudar, pesquisar, consolidar, uma área de conhecimento dentro da academia, a gente está em campos de disputa.
6- Como se dão as ações do Coletivo em relação às mães que compõem o meio acadêmico?
Nós temos mães professoras, pesquisadoras no coletivo. Temos mulheres que não são mães, e o que a gente percebe é que para discutir a violência de gênero na Universidade, a maternidade tem que ser trazida no sentido de novos padrões, com relação ao “o que é ser mãe e acadêmica”, porque o espaço acadêmico é extremamente violento com relação à maternidade, com relação à essa produtividade que se cobra. Então a mulher, a partir do momento que ela tem filhos, ela não consegue responder a todas essas demandas, e mesmo as nossas alunas que têm filhos.
A Universidade é um ambiente que não está propício para acolher as crianças. No Coletivo a gente está nesse exercício de romper com essas estruturas e trazer as crianças, buscar espaços lúdicos, espaços em que as nossas reuniões e as nossas convivências, também dê espaço para essas crianças serem acolhidas. Mas é algo que nós estamos construindo junto com essas discussões sobre as violências. Quando a gente se encontra, é acolher e olhar para os nossos filhos e integrar, porque tem uma dimensão de uma educação das crianças também para esses temas. Tem que ter uma relação teoria e prática. Se nós estamos falando de diversos tipos de violência, a gente tem que começar a pensar em como que tem que ser diferente. Que nós precisamos ter posturas diferentes em relação ao acolhimento, em relação a esses processos de maternidade vivenciados pelas nossas orientandas, pelas nossas alunas, pelas nossas bolsistas do projeto. Nesse exercício de pensar os diferentes tipos de violência contra a mulher no ambiente acadêmico, também é importante pensar essa violência com relação à maternidade, com relação a como a Universidade é um ambiente hostil para as mulheres pesquisadoras que são mães também