Nas últimas semanas, o 8M -JF, fórum de coletivos e mulheres feministas de Juiz de Fora, tem realizado o Seminário da Classe Trabalhadora, uma série de atividades online com o intuito acumular uma discussão a respeito da conjuntura nacional e local, formas de mobilização e caminhos para a superação da crise.
No dia primeiro de agosto, foi realizada a mesa de abertura do seminário, que deu o pontapé inicial nos diversos debates que seguem compondo o evento. Participaram do debate inaugural Giovana Castro, Mauro Iasi, Valério Arcary e Vera Lúcia. A mesa Luta e mobilização em tempos de pandemia, assim como todas as outras atividades do seminário, encontram-se disponíveis no canal do youtube do 8m.
Com o objetivo de aprofundar as discussões iniciadas na mesa, realizamos uma entrevista com Giovana Castro, professora da rede municipal de Juiz de Fora, doutoranda em História pelo PPGHis/UFJF, integrante do Coletivo Cabeça de Nêga e coordenadora do projeto Centro de Memória Negra de Juiz de Fora. Confira na íntegra:
1) A crise do capital e a pandemia resultaram em uma queda histórica do PIB mundial, no aumento do desemprego a níveis inéditos, na liquidação de setores inteiros da economia, a extinção de postos de trabalho e a ampliação ainda maior da concentração de renda. Ao mesmo tempo, a pandemia tem sido utilizada também para dificultar ou até mesmo inviabilizar a mobilização popular, para promover o fechamento dos regimes e para se ampliar os mecanismos de controle social. Nesse contexto, a pandemia não estaria contribuindo para uma derrota histórica da classe? Quais seriam as formas possíveis de resistência nesse momento?
Não sei se podemos falar de uma derrota histórica da classe, porque se fôssemos falar de derrota histórica, falaríamos de vitórias significativas de uma classe que sequer está consolidada, que sequer se compreende enquanto classe trabalhadora. E isso eu acredito e defendo veementemente, muito estimulado por esse modelo de classe que está vinculado à formação de uma esquerda brasileira muito pensada a partir de um processo de industrialização, e que ignora as referências fundamentais de compreensão de como essa classe se forma em um país de transição escravocrata como o nosso, um país de uma precarização do trabalho histórica e no qual as lutas contra essa precarização do trabalho sempre foram feitas à margem das discussões mais flagrantes da elaboração dessa classe trabalhadora. Então eu fico sempre pensando: que classe é essa? Qual a classe trabalhadora no Brasil? Como ela se configura, que elementos ela traz, de que forma ela se organiza, quais são as leituras que são feitas e quais perspectivas futuras para essa classe?
Com relação às modalidades de resistência que a gente tem nesse momento, eu acho que a gente tem que pesar modalidades de resistência. Ponto. Modalidade de resistência em um país extremamente desigual, vinculado a uma estrutura de manifestação de pensamento colonial e de uma desvinculação dessas discussões acerca de uma politização de quem efetivamente move as estruturas desse capitalismo brasileiro, desse capitalismo extremamente canibal da cultura brasileira. Então acho que a gente tem que pensar em formas de resistência que sejam não só geradas para esse momento, mas em formas de resistência como um todo. Que forma de resistência nós efetivamente podemos organizar mediante um cenário das estruturas brasileiras, da formação do Estado brasileiro e dessa nação brasileira? O que seria de fato a resistência brasileira?
2) A fratura criada na sociedade brasileira pela escravidão é sistematicamente ocultada pelo estado. Na sua visão, ainda é possível superar essa fratura dentro do atual sistema via políticas reformistas ou é necessária a ruptura dentro do contexto da luta de classes?
Bom, eu acho que essa segunda questão se relaciona diretamente com a primeira. A gente tem uma ruptura, uma fratura na sociedade brasileira, um abismo que separa diferentes pertencimentos da sociedade brasileira e tudo isso muito mal e porcamente colado em um processo meio Frankenstein, unido pela cola do capital, pela cola do desejo, do discurso meritocrático, do crescimento individual e que é um discurso que vem se fortalecendo nos últimos anos, essa perspectiva da vitória individual, do empoderamento individual, que também acaba minando formas de organização coletiva e que é também uma especificidade do capital: ele consegue incorporar e consegue absorver as nossas lutas. Mas eu fico pensando, quando você diz em projetos reformistas, ou se a gente precisa mesmo fazer aí a ruptura, dentro do processo de luta de classes. Eu acho que essa possibilidade de ruptura é muito distante da nossa realidade. Acho que, inicialmente, eu penso em reestruturações. Não sei se reforma é exatamente o termo. Eu penso em políticas de reestruturação, políticas de repensar um Estado democrático, políticas que aumentem a possibilidade de representação efetiva das ditas minorias, que são minorias simbólicas, não são minorias numéricas. Para que assim, a gente consiga levantar pautas efetivas dentro das possibilidades que nós temos hoje de um estado ultra neoliberal e de um avanço de um neoliberalismo de corte muito conservador, e de um conservadorismo muito medíocre. Não que o conservadorismo possa ser algo bonito de ser visto, mas é de uma mediocridade muito grande, da defesa de desvalores muito grandes, de uma descrença na ciência, de uma descrença na possibilidade do conhecimento, da fé que de certa forma nós sempre mantivemos na pesquisa, nas narrativas, na formação, na emancipação cultural das pessoas. E nós estamos vendo isso ser atacado de uma forma muito arbitrária. Acho que estamos vivendo um momento quase que de entrincheiramento, de uma defesa aguerrida do pouco que nós temos, do pouco que foi montado em termos de políticas públicas e que rapidamente foi desmontado, porque era muito pouco. Mas é um momento de defesas muito aguerridas de contenção de perdas, a gente está “segurando areia apertando a mão” e a sensação é que a areia está escoando muito rapidamente. Então eu penso que, nesse momento, a gente precisa efetivamente de uma luta pela manutenção. Vencida essa luta, que eu espero que a gente vença de fato, que a gente consiga estabelecer uma nova forma de estabelecer política. Uma nova forma de pensar representações políticas, de pensar a formação dos partidos, de pensar os modelos eleitorais e de pensar inclusive a nossa representação dentro dos parlamentos e nos formatos que a gente tem hoje. E que isso implique e desemboque em políticas emancipatórias e políticas de Estado emancipatórias. É quase utópico aquilo que eu penso, mas que a gente consiga agir a partir de políticas emancipatórias que permitam que as pessoas, em determinado momento, tenham a consciência de fato da sua condição enquanto classe, que não existem hierarquias de opressão, de que nós estamos a margem de processos inclusivos e que a gente consiga fazer esse trabalho. Mas é uma longa etapa, é uma longa caminhada, e eu tenho a sensação cada dia mais que nós não estamos andando em direção ao fim, muito pelo contrário, a sensação de que nós estamos retrocedendo à condições muito duras, muito ásperas.
3) O século XXI trouxe avanços tecnológicos na área de comunicação como a massificação da internet e das rede sociais, que foram rapidamente apropriados pelo capital como instrumentos de dominação e controle da classe trabalhadora. Nesse cenário, como se aproximar da classe trabalhadora e consequentemente das periferias majoritariamente pretas dos centros urbanos?
Eu penso que a gente tem que usar essas ferramentas, acho que o século XXI trouxe essas possibilidades de massificação, mas ele trouxe também a capacidade da gente estender a formação e o debate a grupos que estavam alijados de quaisquer outras formas. Mas eu tenho muito cuidado com isso, porque eu acho que a gente está glamurizando o acesso a essas ferramentas também, e partindo da ideia de que todo mundo tem, e isso não é verdade. Nem todas as pessoas têm acesso a essas ferramentas, muita gente ainda vê televisão e ouve rádio, muita gente ainda se informa por esses canais informativos, então eu acho que se a gente pudesse pensar em formas de fazer com que essas ferramentas trabalhassem para nós, retornar os jornais de bairro, dentro das possibilidades retomar a rádio, fazer podcast, divulgar pequenas campanhas, fazer processos de orientação em áudio de 40 segundos, 50 segundos, fazer história em quadrinhos, possibilitar chargista, trazer gente que tenha condição de contribuir com essa formação estendida em uma linguagem: no pretuguês da Lélia. Sou uma forte defensora do pretuguês da Lélia, de fazer uma linguagem que as pessoas entendam, de parar de falar em discussão conceitual, de parar de falar esse palavrês, esse modelo rebuscado que a gente construiu, desse viés acadêmico que não dialoga com a realidade da maioria das pessoas, porque ele é chato, ele é incompreensível, e ele é pouco eficaz. Que a gente consiga resgatar uma linguagem que a gente possa dialogar com as pessoas, que a gente vá em direção a elas e faça um aprendizado com elas, e da gente se apropriar da forma como se comunicam, da forma como se estruturam, da forma como se mobilizam. E que a gente consiga transformar isso em uma grande dimensão, em uma grande rede de disseminação de conhecimento usando as ferramentas que a gente tem e criando outras ferramentas ou retomando ferramentas que já foram eficazes. Eu sou dessa filosofia.