Marcando o mês da Consciência Negra, a APES entrevista a professora Kelly da Silva, que é Pedagoga formada pela Universidade Federal de Viçosa – MG. Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – MG, atualmente professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, presidenta da Comissão Central de Heteroidentificação da UEMG e vice-diretora da UEMG Ubá. Também, membro do Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial de Ubá – COMPIR.
Na entrevista, ela conta um pouco de sua história de luta e superação, sobre a importância das políticas de cotas e da necessidade do combate ao racismo e ao machismo na sociedade atual
1 – Você tem uma história de vida forte, de resistência e luta. Pode contar um pouco dela?
Eu acredito que minha trajetória não se diferencia da maioria das crianças negras e pobres de nosso país. Nasci em uma família nada tradicional na cidade de Nova Era – Minas Gerais, localizada no vale do aço, com cerca de 17 mil habitantes. Nada tradicional, porque sou filha de “mãe solo”, tenho um irmão mais velho que abandonou a escola para ajudar nas despesas em casa e uma irmã gêmea. Nada tradicional para os discursos que insistem em pensar e produzir uma família ideal, composta por um casal heteronormativo, com filhos e com trajetórias lineares de sucesso até a universidade pública. Contudo, a minha constituição familiar é igual a tantas outras dirigidas por mulheres negras, pobres, preocupadas com o sustento dos filhos e que tomam a escola como desafio e, também, como potencialidade de mudança. Aos dez anos, eu já dividia o tempo entre a escola e as faxinas em casas de conhecidos. Conquanto precisasse trabalhar para ajudar nas despesas, sempre me esforcei para não cair no rendimento escolar. Conseguia manter as notas e ainda ajudar com os gastos de material escolar e alimentação. Minha mãe sempre dizia que os estudos eram, sim, importantes, mas também era preciso aprender os afazeres domésticos para conseguir algum dinheiro.
Além de cozinhar bem, outra possibilidade de trabalho era a limpeza doméstica, atividades laborais comuns nas famílias pobres que não viam na educação possibilidade de ascensão social. O trabalho como doméstica não me incomodava, ao contrário, eu gostava de desenvolver os pratos que aprendia com minha mãe na cozinha. Assim, ainda criança, eu era considerada uma boa cozinheira pelas famílias em que trabalhei. Mas a minha condição, sim, me incomodava. A experiência de maior tempo trabalhando com doméstica foi na casa de uma professora.
A minha inquietação com o trabalho doméstico não era pelo trabalho em específico, mas por não me permitir sair do lugar, eu sempre quis conhecer outros lugares e poder oferecer mais recursos à minha família. Sabia que o trabalho como doméstica não me ofereceria mais do que já possuía, era um trabalho para pura subsistência. Quando digo subsistência, falo do mínimo para manutenção da casa, como alimentos básicos e pagamento de contas de energia, água etc., não tendo, por exemplo, acesso a um plano de saúde, ou uma alimentação balanceada.
De alguma forma, eu acreditava que os estudos poderiam ajudar a mudar a situação em que me encontrava. Pensando assim, sempre dediquei muitas horas aos livros. Compreendia neles uma possibilidade para além de conhecer mais. Percebia neles uma ferramenta para a transformação da minha realidade. Mesmo sem conhecimento oficial desses termos, sempre pensei na educação como perspectiva de mudança e queria muito oferecer à minha mãe, em especial, uma vida menos sacrificada.
Boa aluna, nas primeiras séries do Ensino Fundamental, sempre fui muito elogiada e estimulada pelos meus professores à dedicação aos estudos. Na 5ª série, ao lado da minha irmã, já que, até então, sempre estudávamos nas mesmas turmas, vivenciei o estranhamento com a mudança no número de professores, de disciplinas e a falta de contato próximo com os educadores. Um estranhamento que, junto a fatores emocionais (perdemos o pouco dos bens que possuíamos com uma forte chuva que destelhou o casebre em que morávamos), resultou na única reprovação que vivenciei. Essa experiência, como define Larrosa (2002), me inscreveu marcas que provocaram alguns efeitos.
O espaço escolar se tornava a cada dia o espaço onde mais queria estar, mesmo estando muitas vezes cansada do trabalho, eu me surpreendia com cada descoberta, admirava o conhecimento dos professores e me aproximava cada vez mais desse espaço e de alguns profissionais.
A partir desse ano, 1994, em que cursava novamente a 5ª série, decidi dedicar-me ainda mais aos estudos, aumentando o desejo de mudar aquela realidade. Voltei a ser a aluna destaque da turma em aproveitamento e tive a oportunidade de ser acompanhada de perto por professores que perceberam em mim possibilidades de continuar estudando. A escola voltou a ser um lugar de encantamento para mim.
Do Ensino Médio tenho bonitas lembranças de professores levando livros, que estavam listados para o vestibular, até o local onde trabalhava, por não ter tempo livre para frequentar a biblioteca nos momentos em que estava aberta.
Foi então no terceiro ano do ensino médio que resolvi que iria fazer vestibular e seguia estudando em casa após o trabalho, terminei o Ensino Médio em dezembro de 2000. No início de 2001, continuei estudando sozinha em casa, para prestar vestibular no meio do ano, mas minha mãe adoeceu bruscamente nesse período. Troquei os estudos pelos cuidados com ela, que não resistiu e faleceu em outubro daquele mesmo ano.
Ao mesmo tempo em que considerei injusta toda minha dedicação e senti um rancor por não poder ter oferecido à minha mãe uma vida mais digna, juntei os caquinhos e, em 2002, me matriculei em um cursinho pré-vestibular e, foi por perceber que mesmo fazendo cursinho eu precisava de mais tempo para focar nos estudos que pedi folga para me dedicar ao vestibular.
E para minha tristeza, os elogios que eu recebia ao fazer os cartazes, ou sobre quando uma professora minha me elogiava para ela, foram esquecidos. O que ouvi nesse dia foi: “nem eu que estudei em escola particular e tive todas as possibilidades consegui passar em uma Universidade Federal, você acha que vai passar? Não vou te dar férias, você precisa é trabalhar muito e quando estiver mais velha e com algum dinheiro acumulado, faça uma faculdade particular para ter seu diploma”.
Essas palavras me cortaram ao meio, mas eu precisava seguir, engoli as palavras, ela saiu para trabalhar e eu me derramei em lágrimas, já sozinha na casa. Comecei a arrumar a cama, fui para a cozinha e lavei os pratos, minhas lágrimas se misturavam com a água da torneira, tamanha era minha tristeza, meu sonho tinha desmoronado ali. Mas foi ali mesmo, na pia da cozinha que sequei as lágrimas, peguei o telefone e disse a ela que estava indo embora, que poderia dar baixa na minha carteira, que havia sido assinada só com meus 18 anos, mesmo eu trabalhando lá há mais de 6 anos. Ela disse que eu deveria deixar por escrito o pedido de saída, pois eu não teria direito a nada, naquela época a empregada doméstica não tinha mesmo direitos garantidos. Eu não pensei novamente, fiz o texto em um caderno e fui colocar na escrivaninha do quarto, antes de sair desarrumei a cama e saí me sentindo livre, mas preocupada em como faria para conseguir estudar e me sustentar, sem um trabalho.
No mesmo dia saí na cidade e entrei em alguns bares e restaurantes oferecendo meus salgados, consegui que uma padaria encomendasse cerca de mil salgadinhos por semana e alguns restaurantes compravam também semanalmente, mas salgados maiores e em menor quantidade, eu ficava parte da semana preparando os salgados e entregando e outra parte estudando. Na data próxima ao vestibular eu já tinha uma renda maior que a do salário que recebia com doméstica e, conseguia me dedicar mais às áreas que eu faria prova dissertativa. Minha professora de filosofia e sociologia do ensino médio me emprestou as chaves de seu escritório para ter acesso ao computador e internet para ver sobre o vestibular, ela me incentivou muito sobre a continuidade dos estudos.
Dediquei durante todo o ano ao trabalho e ao estudo, estava ansiosa com o resultado, mas seguia com meu trabalho como cozinheira e foi num dia comum, na cozinha de casa que o telefone da vizinha tocou, uma amiga pediu para me chamar e me avisou que o meu nome estava no jornal Estado de Minas como sendo aprovada em Pedagogia, na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Escolhi a UFV por ter mais condições de ajuda a estudantes carentes, com alojamento estudantil e bolsa alimentação. Eu ouvi a notícia incrédula, larguei tudo na cozinha, peguei dinheiro do salgado e saí pra comprar o jornal na primeira banca que encontrei, não sei se a cidade possui mais de uma, quando dei por mim estava no centro da cidade com o jornal em mãos e muitas lágrimas no rosto. Eu não fazia ideia de onde ficava Viçosa, mas sai contando para todos que encontrava na rua, passei na UFV, vou morar em Viçosa. A experiência na graduação foi de surpresas e muito aprendizado, morei em alojamento a graduação inteira, me percebi podendo estudar a maior parte do meu tempo, atuava 12 horas por dia no restaurante universitário para ter bolsa alimentação e, em menos de um ano na UFV consegui bolsa de iniciação científica, eu estava recebendo para me dedicar aos estudos e me formei com medalha Arthur Bernardes, oferecida aos estudantes que formam com coeficiente acima de 90.
Prossegui para o mestrado na UFJF. Em Juiz de Fora fui acolhida por uma senhora aposentada que morava só em um apt de 3 quartos e eu ajudaria com as contas de energia e condomínio. Fui sem saber se ganharia bolsa de pesquisa, mas me inscrevi numa seleção para tutores do curso de pedagogia a distância da UFJF e fui selecionada, assim consegui me manter em JF, no final do primeiro ano de mestrado fui contemplada com bolsa Fapemig e aluguei um quarto e sala, ao final do mestrado me inscrevi numa seleção para professora na UEMG, campus de Ubá, onde atuo até hoje, agora como profissional efetiva. Na UEMG atuei na coordenação de núcleos de pesquisa, na chefia do departamento de ciências humanas, na direção da unidade e estou hoje na vice-direção, além da coordenação institucional (de todas as 22 unidades da UEMG no Estado) da Comissão Central de heteroidentificação. Eu não acessei a Universidade pela política de cotas, essas ainda não estavam implementadas em 2003, mas a política de assistência estudantil, com moradia e alimentação foram essenciais para que eu conseguisse me formar em uma instituição pública e me dedicar quase integralmente aos estudos.
2 – Quais são os efeitos da política de cotas hoje para o Brasil e para a população negra?
A inclusão no Ensino Superior público brasileiro de estudantes negras e negros ou pobres é importante não somente para diminuir a enorme desigualdade, quando se compara a inserção desses alunos e alunas com a dos brancos ou ricos, mas também demonstra como essa inclusão possibilita o convívio entre estudantes de classes sociais diferentes, contribuindo para a análise e a eliminação de preconceitos raciais e de classe. O acesso ao Ensino Superior não soluciona o problema do depreciamento histórico sofrido pelo povo afrodescendente no Brasil e não soluciona o problema estrutural da Educação Superior brasileira. A política de cotas para ingresso ao Ensino Superior brasileiro consolida a dignidade da pessoa humana, valor constitucional supremo e fundamento da República Federativa do Brasil, “bem como não viola do Princípio Constitucional da Igualdade, pois este se refere somente a uma igualdade formal e há, além disso, uma igualdade material que deve ser ambicionada e buscada, qual seja aquela da realidade prática da vida” (TELES, 2015, p. 32). Os efeitos se encontram nas instituições e sociedade como um todo, maior número de negros e negras em espaços que antes não nos encontravam, a possibilidade de atuarmos em todas as áreas profissionais e possibilidade de ascensão social de nossa classe, que consequentemente, traz consigo efeitos negativos, um grande número de sujeitos brancos e brancas raivosos não aceitando nossas conquistas e avanços. Para além desses efeitos, fica explícita também a necessidade de avanço nas políticas, não basta permitir acesso, são necessárias condições de manutenção nas instituições, o que vem sendo nossa luta no movimento negro para os dias atuais.
3 – Mulheres negras sofrem com uma dupla segregação com o machismo e o racismo? Como essa questão se encontra atualmente, após quatro anos de um governo de extrema direita?
As mulheres negras há muito tempo desafiavam o modelo de mulher determinado pelo feminismo branco. Em 1851, Sojourner Truth, ex-escrava que se tornou oradora, fez um famoso discurso intitulado ―E eu não sou uma mulher? – na Convenção dos Direitos das Mulheres em Ohio. “Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?” (TRUTH, 1851, p. 2). Sojourner Truth divulgava, desde o século XIX, que a condição da mulher negra era completamente diferente da situação da mulher branca. Enquanto, naquela época, mulheres brancas batalhavam pelo direito ao voto, ao trabalho, as mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas. As críticas contra o caráter universal do movimento feminista surgem, no Brasil, no final da década de 1980 e no decorrer da década de 1990.
Hoje em dia, não é muito diferente, as mulheres são as primeiras a perderem direitos numa gestão de extrema direita, especialmente as mulheres negras, que em sua maioria são responsáveis pela casa, pelo cuidado, educação e alimentação dos filhos. Numa gestão que fez retornar ao país o desemprego e colocou em vulnerabilidade mais de 33 milhões de pessoas que não possuem o que comer. É a mulher a que renuncia a seu alimento para garantir o dos filhos, ou do marido. A violência doméstica também vai acometer mais as mulheres negras, por todo contexto de fragilidade que vivenciam numa gestão que prioriza ricos e banqueiros e deixa a população à mercê da própria sorte. As políticas públicas para a população carente praticamente inexistiram nesses anos de governo Bolsonaro, a pandemia deixou explícito quem foi deixado para morrer nesse país, faltou vacina, oxigênio, ar e conscientização para nosso povo. A mulher negra segue lutando contra o extermínio dos jovens pretos nesse, mas como enfatiza Sojourner Truth (1985) seguem sendo invisíveis, mas resistentes, e se tem um nome que podemos dar a sobrevivência da população negra nesse país, o nome é resistência. Foram quatro anos de retrocessos para nossa gente, que precisará ser prioridade nessa nova gestão.
4 – O que é necessário hoje no país para vencermos o racismo estrutural e cotidiano?
As armas que possuímos para lutar contra o racismo são as políticas públicas. Nossos gestores precisam conhecer e priorizar o debate racial no país. Não teremos uma democracia consolidada se não tivermos um profundo debate e ações para eliminação do racismo e suas consequências. O movimento negro seguirá em luta e resistência, mas se estas não se transformarem em políticas institucionais, pouco florescerá nosso trabalho.