A APES segue com entrevistas que abordam o enfrentamento ao coronavírus e a defesa das instituições públicas contra os ataques do governo neste momento.
Na conversa de hoje, André Martins, professor da Faculdade de Educação da UFJF, explica o significado político dos mais recentes ataques do governo federal à educação. André explica como cortes de bolsas, propostas de educação a distância e a tentativa de exclusão das ciências sociais e humanas das prioridades do governo representam um aprofundamento do projeto de governo no contexto da crise do coronavírus.
1 – A Portaria 1.122, do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, define prioridades de investimento em pesquisa até 2023, mas não cita investimentos nas áreas de Educação Básica, Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas. Em uma segunda portaria (Nº 1.329), o governo volta atrás, incluindo as áreas anteriormente descartadas. O que representa essa movimentação, dentro do projeto já em curso do governo, para a ciência brasileira?
Precisamos lembrar que a portaria 1.122 foi definida para instruir as ações do Ministério na elaboração do Plano Plurianual (PPA). Esse plano visa ordenar a ação governamental em médio prazo, tendo como base a Constituição, as leis complementares e os interesses governamentais.
O que ficou claro é que o governo tem uma visão empobrecida de ciência ao excluir as Ciências Humanas e as Ciências Sociais Aplicadas de suas prioridades.
Digo empobrecida porque o governo não considera a ciência como um sistema complexo, plural, diverso e integrado por diferentes mediações. É empobrecida porque pensa a ciência por aquilo que ela não é, ou seja, sinônimo de produção tecnológica para um suposto desenvolvimento econômico.
O recuo do governo com a Portaria 1.329 pode ser interpretada como uma vitória das entidades que representam a comunidade científica, dos sindicatos e dos partidos que denunciaram o absurdo da primeira portaria.
Contudo, não podemos ter ilusões. O recuo não terá necessariamente efeitos práticos na execução do PPA. O Ministério poderá implementar sua concepção empobrecida de ciência através de vários mecanismos políticos − editais específicos com maiores aportes para financiamento −, deixando em segundo plano, com menos recursos, as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Se minha leitura estiver correta, teremos novas batalhas pela frente.
2 – Poderíamos entender esta exclusão das humanidades nas prioridades do governo como um ataque próximo ao do Escola Sem Partido? No sentido de sufocar o conhecimento crítico e a liberdade de pensamento?
É possível estabelecermos essa relação.
Em primeiro lugar, existe uma conexão entre as lideranças da organização “escola sem partido” com a família Bolsonaro. Precisamos lembrar que dois filhos dessa família foram os que encaminharam os primeiros projetos de lei destinados a silenciar autoritariamente os professores. Seguindo essa linha, os deputados e vereadores do PSL e de outros pequenos partidos associados encaminharam o mesmo projeto em suas respectivas casas legislativas.
Em segundo, o governo e a organização “escola sem partido” compartilham pouco apreço pela democracia, pelo pluralismo de ideias, pela liberdade de expressão. A organização “escola sem partido” é a expressão da tentativa de afirmar a voz do partido único, isto é, do autoritarismo. Sabemos que o presidente da República e as forças políticas aliadas têm a ditadura como desejo. Ressalto, ainda, que os neoliberais que compõem o governo compreendem que a chamada “liberdade de mercado” pode ser obtida por meio da democracia formal ou mesmo através da ditadura, como ocorreu no Chile. Eles são indiferentes a essas duas formas.
Em terceiro, o governo e a referida organização não toleram o pensamento crítico e o pluralismo de ideias.
Por essa conexão, podemos compreender que a Portaria 1.122, além de representar a visão empobrecida de ciência, como assinalei, é a expressão do autoritarismo governamental, pois ao tentar enfraquecer as Ciências Humanas e Sociais, o governo tenta silenciar a própria sociedade.
Podemos resumir essa ideia da seguinte forma: a organização “escola sem partido” busca o silenciamento dos professores, assim como o governo busca o apagamento das Ciências Humanas e Sociais.
3 – O governo parece aproveitar o contexto da pandemia para avançar em alguns projetos de sua política educacional. Neste sentido, como você percebe as tentativas de implementação da educação a distância, que ganharam fôlego neste momento de interrupção de atividades presenciais nas diversas esferas da educação – municipal, estadual e federal?
Considero que as bizarrices cometidas pelo presidente e por vários de seus ministros e secretários muitas vezes nos impedem de apreender os interesses representados pelo governo. Estou afirmando que o governo Bolsonaro não é constituído apenas por “terraplanistas”.
Esse governo representa vários interesses empresariais. No conjunto, os empresários apoiaram o governo para avançar na destruição dos direitos previdenciários, trabalhistas e sindicais como medidas de contratendência à queda da taxa de lucro no cenário de crise econômica do sistema capitalista. De modo particular, algumas frações dessa classe apoiaram o governo com o compromisso de que todos os bens sociais públicos fossem transformados em mercadoria. É nesse ponto que localizo a questão da educação a distância.
Em agosto de 2018, no início da campanha eleitoral, o candidato Bolsonaro afirmou que a educação a distância deveria ser aplicada do ensino fundamental a educação superior para, de acordo com suas palavras, “combater o marxismo na educação”. Ele defendeu que os estudantes estudariam em casa e só deveriam ir para as instituições para prestarem os exames. Na mesma oportunidade, o candidato afirmou que a educação a distância seria importante para reduzir despesas públicas.
Em agosto de 2019, o ministro da educação informou que o MEC estudava criar o modelo do que chamou de “Universidade Federal e de Instituto Federal digitais”. Segundo ele, esse modelo possibilitaria a diminuição do financiamento da educação pública do sistema federal.
De acordo com o Censo da Educação Superior, divulgado em 2019, o número de matrículas em cursos não presenciais superou as matrículas presenciais. Ao considerarmos o período de 2008 a 2018, verificamos que o crescimento de matrículas em EaD ultrapassou 180%, encabeçado pela atuação das empresas de ensino que identificaram nessa modalidade a forma de intensificar o trabalho docente, sem ter que aumentar as despesas com a força de trabalho na educação. Para que possamos ter uma ideia do que isso representa, cito um exemplo: existem empresas de ensino que vendem seus cursos a R$200,00 mensais em EaD, nos quais um único professor se torna responsável por mais de 200 alunos numa única disciplina.
Além disso, observamos que várias secretarias de educação de estados e de municípios informaram que buscam implantar a EaD para o ensino fundamental e ensino médio no período de isolamento social. Para tanto, contam com apoio de fundações e institutos empresariais nessa investida. Penso que a Fundação Lemann vem se destacando nesse cenário, mas empresas que comercializam produtos pedagógicos estão atentas a esse novo nicho de mercado que pode se abrir.
Em síntese, a EaD está sendo projetada como instrumento para ampliar a mercantilização da educação. E isso interessa ao governo porque interessa a sua base empresarial de apoio.
4 – O corte de bolsas feito pela CAPES na semana passada pode inviabilizar pesquisas de pós-graduação por todo o país. O que este corte sinaliza para as universidades públicas e para os pesquisadores e pesquisadoras do país?
O corte faz parte da política de desestabilização da educação superior pública no Brasil, desdobramento da postura autoritária e da visão empobrecida de ciência, que citei anteriormente.
Para ser mais objetivo e preciso, reproduzo uma formulação contida no Plano de Governo da candidatura Bolsonaro: “[As universidades] Devem desenvolver novos produtos, através de parcerias e pesquisas com a iniciativa privada. Fomentar o empreendedorismo para que o jovem saia da faculdade pensando em abrir uma empresa.”
Qual seria a importância da pós-graduação e da pesquisa nesse modelo bizarro de universidade? Simplesmente, não existe qualquer importância.
Em 2019, o presidente afirmou que o estudante de universidade pública “faz tudo, menos estudar”. Na mesma entrevista, ele afirmou: “Entre as 200 melhores universidades do mundo, tem alguma brasileira? Não tem! Isso é um vexame!”.
Com essa formulação, o presidente informa que as universidades brasileiras seriam dispensáveis.
Precisamos lembrar que esse governo não tem nenhum compromisso com a ideia de soberania nacional. Ao contrário, deseja aprofundar a nossa dependência econômica, política e científica ao novo cenário mundial. Para isso, precisa destruir tudo aquilo que pode sinalizar na direção contrária.
Isso me leva a afirmar que esse ataque não faz parte do rol das bizarrices governamentais cotidianas. Trata-se de um projeto de poder bem articulado que tem o apoio de certos empresários locais e estrangeiros.