Carolina Bezerra - entrevista completa


1) De que forma você enxerga a chacina ordenada pelo governo do Rio de Janeiro contra a comunidade do Jacarezinho e como ela se relaciona com a atual conjuntura?


Não há como não me recordar que, há quase um ano, no dia 13 de maio eu dei uma entrevista ao vivo pelo canal da APES, falando exatamente sobre racismo, necropolítica e desigualdade em tempos de pandemia e, naquele momento, tínhamos outros números. 

Mas acompanhando os diagnósticos de especialistas, de intelectuais, de pesquisadores, já poderíamos antever as barbáries, as atrocidades e as várias investidas contra os Direitos Humanos que nós teríamos nesse período de pandemia.   

Então, temos que parar de tratar esse governo como louco, como anticiência apenas. Eu acho que as questões são mais complexas e profundas, porque é um projeto civilizatório que está sendo implementado e o governo  sabe o que está fazendo. Se nos lembrarmos, naquela época, eu falei de uma propaganda que foi retirada do ar pelo STF, que dizia que "o Brasil não pode parar". Nela, as pessoas que estavam à frente eram negras. Só havia pessoas negras em vários espaços.  Logo depois de uma chacina como esta, o presidente faz um pronunciamento sobre o cabelo black power de um apoiador, falando de baratas e piolhos. Tudo isso se relaciona a um imaginário que está se construindo no país, de olhar para essas ações não como Direitos Humanos que estão sendo feridos. Quando o vice presidente diz "era tudo bandido", que vai instaurar uma lógica de que "bandido bom é bandido morto", porque na verdade você está acionando imaginários para poder legitimar uma política genocida, da morte, uma necropolítica.

Então, quando você associa a ausência do Estado em setores básicos, relacionados à educação, cultura, saúde, geração de emprego e renda nesses espaços e você, em um momento de pandemia, mesmo contra as recomendações de todo um sistema jurídico, dos organismos internacionais, e tudo isso, promove uma chacina, no intuito de defender crianças e adolescentes, no qual o Estado não cumpre a sua função, toda essa política já é anunciada. Porque você não tem um auxílio emergencial, uma política efetiva na área da saúde e acaba, mais uma vez, penalizando e culpabilizando a miséria e a pobreza que é gerada pela própria ausência desse Estado. E quando ele chega é para exterminar esse grupo, como uma forma de conter, inclusive, qualquer forma de reação e resistência que possam surgir. Nós sabemos que, em uma situação em que a maioria da população pobre e preta não pode estar em casa e cumprir a quarentena, com pessoas passando fome, com várias mulheres, trabalhadoras, sobrecarregadas com as crianças, jovens e adolescentes, instaura-se uma política de terror. É porque essa política é dirigida para exterminar esse grupo.


 Quando o Bolsonaro aparece falando que no cabelo daquele homem negro tem barata e piolho, suas falas, e a forma como ele tem conduzido, demostram não só em dados - quando a gente fala dessa ação que foia mais letal que a polícia do Rio de Janeiro já cometeu, e se trouxermos os dados de que, desde 1998, a Polícia do Rio mata em média uma pessoa a cada 10h, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), a gente pode dizer que 20957 pessoas morreram em confronto com a Polícia no estado do Rio de Janeiro. Se a gente soma esses dados ao genocídio da juventude negra, ao adoecimento das mulheres negras, ao índice de desemprego das mulheres negras durante a pandemia, que tem aumentado, isso se torna evidente que é uma política de extermínio desse grupo. Aí não tem como não lembrar uma das maiores atrocidades que a gente já viveu na nossa história contemporânea, que são os campos de concentração, o holocausto. Se lembrarmos que a política utilizada pelo Goebbels, pelo Regime Nazista era justamente associar judeus iguais a vermes e ratos. Então, quando você desumaniza determinado grupo por meio de uma brincadeira, de uma piada, falando que "são todos bandidos", sendo que os peritos, advogados, os ativistas, quando foram nos locais, viram crianças que levaram tiros sentadas em cadeiras. Não houve nenhum aspecto de resistência e do ponto de vista jurídico, não há nenhuma justificativa para tamanha barbaridade, tamanho genocídio implementado pelo Estado. Mas, quando você aciona esse imaginário, você acaba, de uma certa forma, tendo um "apoio". A população acaba não lidando com esse extermínio como algo ruim,  e vê como algo natural e necessário para o bom funcionamento da sociedade. Eu extermino um grupo que está sendo, de certa forma, pernicioso a todo o coletivo. Eu acho que esse é um aspecto que precisamos nos atentar muito na forma como esse governo vem direcionando essas questões.



2) A ação comandada pelo governador Cláudio Castro (PSC-RJ) desrespeita decisão do STF, que proibiu ações nas favelas durante a pandemia. O próprio governador foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro um dia antes da chacina. Quais as implicações desta ação para a democracia brasileira?


Eu acho que uma ação como essa, que foi executada um dia depois que o governador do Rio de Janeiro teve uma reunião com o Presidente da República, demonstra um alinhamento político dessa necropolítica. Mas, ao mesmo tempo, há todo um esquema de proteção, que se relaciona com a corrupção, com as milícias. Então, não tem como não relacionarmos todo esse contexto à própria execução da vereadora Marielle Franco. Se lembrarmos que sua atuação política estava relacionada exatamente a essa questão. A dissertação de mestrado que ela  fez na Universidade Federal Fluminense vai justamente trazer à tona essa denúncia de como a polícia no Rio de Janeiro atua muito mais em defesa do patrimônio e em defesa dos interesses de determinados grupos. Que o processo de militarização da polícia do estado do Rio de Janeiro acaba sendo um dos aspectos fundamentais para a consolidação de um estado penal, que é quando você tem o aumento de uma repressão estatal, exatamente contra os grupos mais pobres e excluídos da sociedade brasileira, como uma forma de conter justamente os efeitos que a ausência total de políticas sociais, de políticas públicas efetivas, em áreas estratégicas da sociedade. Acabam gerando violência, fome, morte e carência. É muito interessante que a charge final que a Marielle coloca na dissertação dela, que tem o nome "aspiração dos favelados" mostra várias pessoas na favela, segurando cartazes escritos "rede de esgoto"; "luz e água"; "coleta de lixo" e o policial dizendo do rádio "não se trata de aspiração de droga senhor, moradores do morro aspiram por benefícios em serviços públicos, o que eu faço agora?". Então eu trago a Marielle porque a morte dela também está relacionada com isso, se a gente pensar que ela tinha uma discussão e que fazia um trabalho que falava dessa necropolítica e dessa morte não somente do moradores de favela, mas aos próprios policiais que, em sua maioria, são trabalhadores pretos e pobres também, ou "quase pretos de tão pobres", como a música Haiti de Caetano trata, a gente está falando de um determinado grupo, de uma determinada classe social, que se extermina.

Então, eu acho muito importante ter clareza que a pandemia, nesse contexto, acabou sendo utilizada como mais um fator que vai potencializar o estado agir a partir dessa necropolítica e dessa lógica, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha assinalado, apontado, ainda que estejamos recebendo uma pressão imensa dos organismos internacionais e de tudo isso que está acontecendo.

Com relação a esse discurso, eu penso que nós precisamos entender, conceber, os Direitos Humanos como universais e naturais. Eles estão relacionados à dignidade da pessoa humana, independentemente para quem eles são dirigidos. São inalienáveis,  são universais, têm que ser exigidos, protegidos e promovidos. Então, me assusta muito quando a gente acaba tendo ações de um Estado que fere e que rasga a nossa constituição em diversos aspectos, porque nós não estamos mais vivenciando mais uma ditadura, mas estamos operando com mecanismos políticos e com mecanismos de repressão, muito mais perversos em diversos aspectos, porque acredita-se que estamos vivendo em um período de democracia. Então, eu também acho que é importante colocar, como diz a professora Diva Benevides, da faculdade de educação da USP, infelizmente nos últimos anos, pós ditadura, no Brasil, a defesa dos Direitos Humanos acabou sendo associada apenas à defesa de criminosos e também, a partir do momento que se perdeu o interesse na defesa dos direitos humanos, quando esses eram pensados também para defender os segmentos de uma classe média, que na época da ditadura incluía presos políticos e tudo isso, houve uma transformação dessa época, que hoje acabou gerando uma diferenciação que é muito profunda e cruel, segundo a professora, entre ricos e pobres, entre intelectuais e letrados, entre a classe média e a classe alta. Então, quando temos o questionamento desses direitos humanos, ele não é em relação ao seu conceito mais universal, ele é um questionamento porque ele não garante a defesa da população pobre, das classes mais populares e aí, com certeza, é onde se concentra a maioria da população negra. Então penso que esses fatores são muito críticos e muito importantes de serem analisados. A defesa dos direitos humanos precisa ser para todos. Nós não podemos ter um Estado que utiliza o aparato da violência para culpabilizar e reprimir, para violentar aqueles que já são os mais violentados pela pandemia e por essa ausência de políticas públicas efetivas nos setores cruciais, principalmente no momento de pandemia.



3) Quais as opções e perspectivas de luta contra o genocídio da população negra no Brasil?


Quando a gente pensa sobre as perspectivas de luta contra o genocídio da população negra no Brasil, eu vejo algumas questões: a primeira delas é que nós precisamos pensar em ações a curto, médio e longo prazo; a segunda é que nós precisamos pensar em ações inter-setoriais, interdisciplinares, inter-áreas, ou seja, você tem que pensar a elaboração de políticas públicas, que vão articular várias pastas e secretarias, várias frentes: saúde, educação, comunicação, segurança pública, áreas da economia, geração de emprego e renda, esportes, lazer, tudo de uma forma articulada. Ao mesmo tempo eu fico pensando em estratégias de pressão e de cobrança do governo brasileiro, efetivas e como exemplo muito salutar eu penso no quanto foi importante para a aprovação da Lei Maria da Penha, por exemplo, a articulação de organismos internacionais, de organizações internacionais. Mas houve pressão de muitas entidades e fóruns na América Latina para que ela acontecesse, então eu penso que nós precisamos dar visibilidade internacional a essas questões, existem várias formas como se fossem tribunais internacionais que têm penalizado, seja em política, ou outras questões, alguns países. Então acionar essas redes internacionais é importante, em determinados aspectos, mas eu penso que será fundamental também, a médio e a longo prazo, ações que busquem combater esses ideais que de uma certa forma essa política converge ataques aos Direitos Humanos em várias frentes, na questão das classes sociais, na questão étnico racial, na questão de gênero, na questão da LGBTTIfobia. Então pensar em ações anti racistas, anti lgbttifóbicas, anti misóginas, contra todo o preconceito que é veiculado contra os movimentos indígenas, quilombolas, ao MST. Eu penso que se faz urgente campanhas e movimentos das entidades civis e da sociedade, de maneira geral, pela via comunicacional e da mídia, um investimento muito intenso na área da educação, da educação básica à pós-graduação, com formação sobre ética, direitos humanos, educação para as relações étnico-raciais, educação para as relações de gênero e sexualidade, em todos os cursos da Universidade. Nós precisamos formar profissionais, que quando forem ocupar espaços de decisão e poder na sociedade brasileira, tenham uma formação para entender o racismo, o preconceito e essas desigualdades estruturais, que foram construídas a partir da própria formação histórica e estrutural da sociedade brasileira. Então eu acho isso fundamental.

Do ponto de vista político, nós só vamos conseguir avançar quando houver uma convergência das pautas da esquerda brasileira. Nós precisamos também pensar que a interseccionalidade vai ser fundamental para  superarmos esse momento. A gente precisa articular essa luta anticapitalista. A questão de classe, com a questão de gênero, com a questão racial, com a questão de todos os grupos subalternizados e marginalizados da sociedade brasileira, nós precisamos construir uma frente política ampla, para combater a barbárie, para combater a necropolítica e esse genocídio que está sendo implementado. Para isso, nós precisamos de formação, não podemos ser apenas as mesmas pessoas que sempre estão pesquisando e falando disso. Nós precisamos criar mecanismos para garantir a permanência desses jovens negros, dessas crianças negras na escola, e garantir também, em termos de Segurança Pública, que elas possam chegar à adolescência, à vida adulta e à velhice. É muito importante que esse genocídio seja percebido como algo que afeta a vida de todos nós, que uma sociedade de um país que extermina determinado grupo da sociedade dessa forma, traz sequelas para toda a sociedade, são vidas que estão sendo perdidas para a Covid, para a chacina, para a necropolítica e é toda uma potência de vida, criatividade, que o país está perdendo. Essa política da morte faz com que a sociedade perca e isso precisa ser pesquisado, avaliado, estudado, analisado, em termos de impacto para as novas gerações e em termos de impacto do que nós, enquanto sociedade, vamos ter que lidar e enfrentar pós pandemia.